Foto: Marina Harkot

Por Marina Harkot*

Os resultados da última Pesquisa Origem e Destino (também conhecida como “Pesquisa OD”, ou apenas “OD”) estão sendo aguardados ansiosamente por pesquisadores e entusiastas do urbano há algum tempo – mais ou menos desde que a coleta de dados começou, em 2017. A base de dados completa, tornada pública no início de julho pelo Metrô-SP, responsável pela pesquisa, são a versão mais atualizada da pesquisa que mensura os deslocamentos de pessoas na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) e as características de quem está se movendo, bem como as motivações por trás das viagens e uma série de outras informações que estão na base do planejamento de políticas de mobilidade urbana da RMSP (região metropolitana de São Paulo). São os resultados da Pesquisa OD que orientam a priorização da construção de determinada linha de metrô ante outra, por exemplo, já que a pesquisa mensura a demanda de viagens, a partir de informações como o local de origem e de destino dos deslocamentos que são feitos cotidianamente.  A pesquisa é feita a cada 10 anos, por isso seus resultados também são essenciais para identificar mudanças e tendências – como, por exemplo, o efeito que a construção de determinada linha de metrô tem sobre os padrões de viagens ou como uma crise econômica impacta nas dinâmicas de deslocamentos dos cidadãos da metrópole paulistana.

Os dados (aqui disponíveis) ainda renderão muitos anos de análises e debates aprofundados – até agora usamos os resultados de 2007 para fazer praticamente todas as análises relacionadas a mobilidade urbana em São Paulo que circulam por aí – mas podemos começar desde já a pensar sobre o que os números nos mostram. Esta última edição da pesquisa tem sido bastante esperada principalmente porque foi uma década de grandes mudanças, tanto do nosso arcabouço legal referente ao campo do planejamento dos sistemas de mobilidade quanto às políticas que foram implementadas a nível municipal, estadual e federal.

A nível federal, em 2009 o Governo Federal zerou o IPI (Imposto sobre Produto Industrializado) sobre motos e automóveis produzidos no Brasil como estratégia de manutenção do consumo interno frente à crise econômica mundial iniciada no mesmo ano. Há quem diga que essa tenha sido a gota d’água para a saturação do trânsito nas grandes cidades do país – e o início de congestionamentos em cidades onde esse nunca havia sido um problema.

Em relação ao arcabouço legal, tivemos a implementação da Política Nacional de Mobilidade Urbana (PNMU), em 2012 – responsável pelas diretrizes que orientam a elaboração de Planos de Mobilidade Urbana, que obrigam municípios com mais de 20 mil habitantes ou localizados em regiões metropolitanas a planejarem seus sistema de mobilidade, priorizando investimentos orientadas a pedestres, ciclistas, usuários do transporte coletivo e transporte de carga. A PNMU coloca, em tese, os automóveis em último lugar da lista de priorização de recursos pelos municípios, uma grande mudança ao se considerar que foi o livre trânsito para carros que orientou o desenvolvimento de boa parte das cidades brasileira.

Foto: Marina Harkot

São Paulo e Região Metropolitana

Os dez anos que separam as duas edições da Pesquisa Origem e Destino foram marcantes pra São Paulo: em relação ao sistema de trilhos, houve a modernização dos trens do Metrô e da CPTM, expansão da Linha 3 (Verde) do Metrô, inauguração das Linhas 4 (Amarela) e 5 (Lilás). A consolidação do Bilhete Único, no formato tal qual conhecemos hoje – com direito ao uso de quatro ônibus ou três ônibus e uma passagem de trem/metrô no período de 3 horas – se deu em 2008, o que, somado aos modelos de Bilhete Único temporal, implementados em 2014, também merecem ser mencionados. Além disso, 2013 é marcado pelo início do governo Fernando Haddad na Prefeitura de São Paulo – que, tanto por motivos estratégicos da gestão quanto por razões conjunturais (os protestos de Junho de 2013, por exemplo), acabou tendo um grande enfoque sobre políticas de mobilidade urbana, também motivadas pelo processo de revisão do Plano Diretor e a elaboração do Plano de Mobilidade Urbana.

Foram concentrados investimentos em faixas exclusivas de ônibus, na política cicloviária, e em medidas de redução de velocidade viária. Todas políticas que começaram, ainda que de maneira tímida, a redistribuir espaço das ruas entre os modos de transporte, visando maior equidade no uso das ruas – é bom lembrar que aproximadamente 80% do viário é ocupado por automóveis, responsáveis por cerca de 30% das viagens diárias. Resultado disso? O governo ficou tão marcado por essa abordagem que o feitiço começou a virar contra o feiticeiro: a política cicloviária, prevista no Plano de Metas 2013-2016 da gestão, destinou 400km de ciclovias e ciclofaixas para serem implementadas, o que se tornou um dos principais assuntos do debate público paulistano, quase sempre vista de forma negativa, e uma pauta fortemente usada por adversários de Haddad nas eleições de 2016 contra a sua reeleição.

Por isso, os resultados da Pesquisa Origem e Destino trazem algumas informações preciosas a respeito do impacto, especificamente, da política cicloviária – que tampouco foi inventada pela gestão Haddad, mas que ganhou força a partir de 2007, quando a Lei Municipal nº 14.266/2007 cria o Sistema Cicloviário da cidade de São Paulo e define a CET como responsável por ele. Com essa mudança, fica mais clara a abordagem da prefeitura em relação à bicicleta, que passa a ser vista “oficialmente” como modo de transporte: até então, a pasta responsável por isso era a Secretaria do Verde e do Meio Ambiente, o que, via de regra, conferia um status de lazer à política cicloviária, priorizando rotas que conectariam os parques municipais entre si, por exemplo.

Foto: Marina Harkot

Crescimento de viagens de bicicletas e seus motivos

Apesar de ainda corresponderem a pouco mais de 1% do total de viagens captadas pela Pesquisa OD, as viagens em bicicleta cresceram 25% entre 2007 e 2017, em toda a região metropolitana de São Paulo – enquanto o crescimento total de viagens no mesmo período foi de 9%. Este resultado acompanha a série histórica, com as viagens em bicicleta sempre crescendo acima do crescimento total.

Os motivos de viagens que mais cresceram nesse período também surpreenderam: trajetos no quais a bicicleta é o modo principal com motivos compras (325%), lazer (100%) e educação (36%) foram maiores do que o crescimento total das viagens. Uma das hipótese é que, nesse intervalo de 10 anos a bicicleta passou a ser mais adotada para realizar pequenas viagens, dentro dos bairros – o pode ter sido incentivado pela malha cicloviária recém implantada – mas também pelo transporte que ficou (bem!) mais caro nesse intervalo, tornando ainda mais inacessível para parcela da população pagar tarifa para destinos que não são perto o suficiente para ir a pé e nem longe o suficiente para ir de transporte público.

A bicicleta sempre foi, em São Paulo, um modo de transporte utilizado majoritariamente por população de baixa renda, por uma série de motivos que envolvem desde a inexistência ou baixa qualidade da rede de transporte que atenda essa população que normalmente, vive em áreas mais distantes dos postos de trabalho, até a incompatibilidade entre horários de trabalho e do transporte e altos custos das tarifas, que acabariam consumindo uma parcela muito alta da renda de pessoas que, muitas vezes, não têm empregos formais. Em 2007, as faixas de renda mais baixas – faixas 1 e 2, de famílias com renda familiar mensal que não alcança quatro salários mínimos – correspondiam a três quartos (76%) de todas as viagens feitas em bicicleta. Em 2017, as viagens feitas por essa parcela da população caem um pouco em relação ao total de viagens – passam para pouco menos de 70% do total. O motivo para essa ligeira queda em relação ao total de viagens foi o crescimento das viagens feitas por pessoas das faixas de renda mais altas – as faixas 4 e 5. As viagens feitas por pessoas da faixa 4, de renda entre R$ 7632 e R$ 11448, passaram de 4.6% para 6.7% do total de viagens, com um crescimento de 88% em relação a 2007. Já as viagens da população com a renda familiar mais alta de todas – acima de R$ 11488, passaram de 1,2% do total de viagens de bicicleta em 2007 para 4,9% em 2017. Resultado disso é que o crescimento das viagens de bicicleta feitas por essa faixa de renda foi de 398% em relação a 2007 – se antes essa parcela da população era responsável por pouco menos de 4 mil viagens diárias, a Pesquisa OD aponta que, depois de 10 anos essas viagens correspondem a mais de 19 mil viagens diárias.

Deslocamentos de Bicicleta na RMSP. Fonte: Pesquisa Origem e Destino 2017.
*Faixa 1: até 1.908 reais; Faixa 2: de 1.908 a 3.816 reais; Faixa 3: de 3.816 a 7.632 reais; Faixa 4: de 7.632 a 11.448 reais; Faixa 5: mais de 11.448 reais.
** Total de viagens em bicicleta

O crescimento entre as faixas de renda mais altas foi um resultado tão em evidência que até foi destacado pela imprensa. Entretanto, é uma mudança que não corresponde nem a 12% do total de viagens em bicicleta realizadas – então, por que é importante olhar para ela?

Tal crescimento contém uma série de informações, indicando tendências de comportamento mas também refletindo a implantação de políticas públicas nos últimos dez anos. É impossível deixar de pensar que a adoção da bicicleta entre as classes mais altas está conectada a um movimento mais amplo de sua ressignificação, desde um estilo de vida e “reconexão com a cidade” até questões como mudança de atitude individual motivada por diminuição das emissões de carbono, por exemplo – o transporte é, nos centros urbanos, o principal responsável por elas. Foi no período entre as duas últimas edições da Pesquisa OD que uma série de cidades ao redor do mundo passaram a implementar políticas de ciclomobilidade e sistemas de bicicleta compartilhada, conscientes de que as soluções praticadas até então – como aumentar o espaço de circulação para carros conforme cresce a frota e a eterna promessa de expandir a rede de transporte público – não dariam conta dos desafios que uma população urbana crescente e a modernização necessária na maneira de usar a cidade pedem.

No município de São Paulo, esta tendência parece ter, também, uma outra raiz: a própria maneira como a política de ciclomobilidade foi implantada. Em primeiro lugar, foi uma política pública municipal inserida em um contexto de deslocamentos e dinâmicas econômicas metropolitanas, na qual a rede cicloviária construída na cidade ainda tem muito pouco de conexão com outros municípios da região metropolitana ou com o sistema de transporte que os conecta. Além disso, na cidade de São Paulo em si, a rede cicloviária acabou também por reforçar tendências históricas: concentrou boa parte da infraestrutura naquelas localidades que já são as mais beneficiadas por toda a infraestrutura urbana e onde vive a população de maior renda – além de ser onde está concentrada a maior parte dos postos de trabalho. A análise das viagens por zona aponta que regiões que em 2017 foram o local de origem da maior quantidade de viagens nas faixas 4 e 5 de renda foram atendidas por uma rede cicloviária mais densa e coesa – e não apareciam como pólos de origem de viagem de bicicleta em 2007.

À época do planejamento e construção da rede, muito foi discutido e criticado a respeito da localização das ciclovias e ciclofaixas que seriam implementadas e, principalmente, a concentração delas em algumas regiões da cidade onde a bicicleta não tinha tradição de uso como meio de transporte. Tal discussão foi reforçada pela escolha das localidades onde foram instaladas as estações do sistema de bicicletas compartilhadas, assunto sobre o qual já houveram discussões anteriores neste espaço (veja esse texto sobre as bicicletas compartilhadas e esse sobre a circulação das de uma marca específica).

As poucas conexões cicloviárias nas pontes que atravessam os rios Pinheiros e Tietê, bem como a inexistência de infraestrutura que ligue a ciclovia da Radial Leste ao Centro da cidade, indicam que as escolhas para os primeiros 400 km da rede não priorizaram conectar as periferias ao centro – geográfico e econômico da cidade – mas sim construir uma rede mais densa e conectada entre si no próprio centro. Além disso, as duas infraestruturas de melhor qualidade estão localizadas na Avenida Paulista e na Avenida Brigadeiro Faria Lima – sendo o eixo cicloviário do qual a segunda faz parte, que conecta a Vila Leopoldina a Santo Amaro, atravessa um dos principais pólos de emprego do município, e tem um dos maiores fluxos de ciclistas do mundo. A contagem de ciclistas feita pela Ciclocidade em dezembro de 2018, indicou que 6.581 ciclistas e patinetes passaram em determinado ponto da avenida, entre 6h e 20h.

Foto: Marina Harkot

Mais mobilidade entre as classes de rendas mais altas

Um dos resultados gerais mais importantes trazidos pela Pesquisa OD é que a oferta de transporte público e os tempos de viagem tiveram melhora justamente entre a população de renda mais alta. Assim, a desigualdade no acesso à rede de mobilidade aumentou – o que aconteceu, também, entre os usuários de bicicleta. Os 400 km de rede cicloviária implementados entre 2013 e 2016 estavam inseridos em um plano mais amplo, que consta do Plano de Mobilidade aprovado em 2015 e indica cobertura de 100% do território da cidade de São Paulo até 2028, seu prazo de vigência. Ou seja, se a opção inicial da Prefeitura, na época, foi formar uma rede cicloviária mais consistente no centro da cidade para consolidar uma política pública e inserir a bicicleta no imaginário e no cotidiano da população a partir da área que mais recebe atenção e investimentos públicos, havia um plano traçado para expandir as fronteiras da infraestrutura para o resto do município a médio prazo.

Entretanto, desde o início da gestão Doria-Covas, tais planos pouco caminharam. Doria, que se elegeu com o slogan “Acelera São Paulo” e com a plataforma de campanha voltada a aumentar a velocidade máxima permitida nas marginais e criticando a política cicloviária de Haddad, nada fez para incentivar o uso da bicicleta no pouco tempo em que ficou na Prefeitura até sair candidato ao governo do estado, ainda em abril 2018. Covas, seu vice, lançou uma proposta de revisão do Plano Cicloviário elaborada a portas fechadas em agosto de 2018 – e, de lá para cá, o que fez foram rodadas e mais rodadas de audiências públicas, que ainda não se transformaram em planos – ou quilômetros – concretos. Importante dizer que o processo de elaboração do PlanMob já tinha passado pela etapa de consulta e participação pública, com extensas oficinas e audiências com a população, há menos de 5 anos antes da proposta de Covas.

Pensar além de ciclovias e ciclofaixas

Os resultados da Pesquisa OD demonstram que os investimentos da prefeitura até 2016 surtiram efeito, incentivando viagens em bicicleta e mostrando uma forte relação entre adoção e uso da bicicleta e a oferta de infraestrutura cicloviária. Entretanto, ainda há muito no que se avançar. Em primeiro lugar, se considerando que a maior parte das viagens são feitas por pessoas das faixas de renda mais baixas, é essencial a construção de bicicletários seguros e práticos em estações de trem, metrô e terminais de ônibus com quantidade de vagas compatível com a demanda e horários de uso  e que estejam de acordo com os horários de funcionamento da rede de transporte público – ainda melhor se os bicicletários funcionarem 24h. Bicicletários que conectem casa-estação de transporte de média/alta capacidade estão entre as melhores medidas para estimular viagens de bicicleta em metrópoles como São Paulo, com uma ocupação espraiada, fronteiras distantes e distribuição de emprego concentrada.

Nos territórios nos quais a bicicleta já é (e sempre foi) muito utilizada e naturalizada e dentro dos bairros, mais importante do que implementar infraestrutura cicloviária é tornar o trânsito seguro para que o viário possa ser compartilhado e as pessoas possam escolher os trajetos desejados ou os mais práticos. Isso é importante para incentivar e difundir o uso da bicicleta entre pessoas que não necessariamente vão pedalar até o trabalho – mas que podem pedalar para fazer compras, para a escola, para as viagens relacionadas ao trabalho de cuidado que realizam dentro do próprio bairro e mesmo para atividades de lazer.

Por fim, fica clara a necessidade de uma estratégia metropolitana de incentivo ao uso da bicicleta: afinal, se a dinâmica econômica é metropolitana, bem como os deslocamentos e a rede de transporte público, por que a política cicloviária é exclusivamente municipal? Ou, ainda, por que as políticas de ciclomobilidade de diferentes municípios não se integram entre si? Os resultados da Pesquisa Origem e Destino apontam caminhos e indicam tendências. Cabe agora ao poder público analisá-los com atenção e fazer uso dessas informações para que, daqui a 10 anos, possamos olhar retroativamente e ver os resultados das políticas públicas implementadas, numa esperança de uma metrópole mais amigável e ciclável.

* Marina Harkot é cientista social pela FFLHC, mestra e doutoranda em Planejamento Urbano e Regional na FAU – USP e pesquisadora do LabCidade.