Casa em área de risco em Itaquera. Foto: Gazeta da Zona Leste

Por Isadora de Andrade Guerreiro*

O Auxílio Aluguel voltou a ser pauta desde o último dia 22 de julho, quando a prefeitura anunciou o corte de 4.879 benefícios com a justificativa de que existiria a possibilidade de que as famílias que o recebiam estarem morando fora de São Paulo, uma vez que estas estariam sacando os recursos em caixas eletrônicos fora da cidade. A medida foi criticada por especialistas e inclusive pelos setores internos à Prefeitura responsáveis pelo programa. No dia 31 de julho, o juiz Fausto José Martins Seabra, do TJSP, deferiu uma liminar impedindo o bloqueio dos benefícios, a pedido do Ministério Público do Estado de São Paulo, argumentando que os beneficiários garantia constitucional de ampla defesa e não podem ter o recurso bloqueado antes de comprovarem a regularidade de sua situação.

Nessa situação, chama a atenção a falta de preocupação da Prefeitura de São Paulo que, ao retirar um benefício garantido por lei como o Auxílio Aluguel, pune os moradores sem de fato comprovar a irregularidade (ou não) da denúncia. É necessário ressaltar, também, a rápida mobilização de advogados e advogadas populares, da Defensoria Pública, do MP-SP e do CMH (Conselho Municipal de Habitação), que em duas semanas conseguiram reverter esse quadro.

O que está por trás dessa ação? Por que o Auxílio Aluguel voltou a ser pauta nesse momento? A punição de cerca de 18% dos beneficiários do programa é apenas uma medida de cunho legal ou tem a ver com economia de recursos ou ainda outros interesses? Está dentro de outras ações da Prefeitura que a justifiquem? Estas perguntas podem nos levar a outras questões que não apenas a legalidade da situação contratual de pessoas que, antes de ser beneficiárias, tem necessidades objetivas e morar faz parte delas. É importante não reduzir o tema a um debate jurídico que desfoca elementos como a própria institucionalização dos modos de sobrevivência populares realizada pelo Auxílio Aluguel. Nesse caso, a Prefeitura não parece se importar em saber quais eram as soluções encontradas pela população para “se virarem” com o alto aluguel das periferias e o escasso auxílio. Percebe-se assim que ela tem se apoiado, ao longo dos últimos 15 anos, em estratégias como o Auxílio Aluguel para remover famílias, dentro de uma lógica de produção habitacional que remove mais do que assenta. É preciso nos perguntar então: o Auxílio Aluguel é parte da política habitacional que dá acesso ao Direito à Moradia ou um instrumento de gestão de populações que nunca vão alcançá-lo?

É necessário ter em vista que o bloqueio atual  foi feito em ação quase concomitante com uma alteração na Portaria Sehab 131/2015, que regulamenta o atendimento habitacional provisório no município de São Paulo. Antes para os casos de remoção por conta de obras públicas ou regularização e urbanização as pessoas removidas recebiam o benefício de maneira continuada até o atendimento definitivo. Já para os casos de atendimento emergencial (em caso de desastres, remoção em áreas de risco e casos de extrema vulnerabilidade) o auxílio era recebido de forma temporária por um ano, renovável por mais um. A mudança da Portaria mexe em três questões:

_ Retira o atendimento para os casos de extrema vulnerabilidade, entendendo que se trata de um instrumento da assistência social e que deve ser realizado pela secretaria própria (SMADS). Essa alteração corresponde ao entendimento de que tais casos necessitam de atendimento individualizado e em conjunto a medidas de apoio, sendo que o Auxílio Aluguel, sem controle de destinação dos recursos, acaba não cumprindo a função de “porta de entrada”, representada pela habitação, para a busca de autonomia desta população.
_ Altera a concessão do benefício para as remoções de áreas de risco, que só pode agora ser realizada para assentamentos consolidados há mais de dez anos. Essa alteração vem para mitigar o caráter de incentivo a novas ocupações que o Auxílio Aluguel adquiriu principalmente para as áreas de risco, que tem agilidade de remoção.
_ Mantém o caráter continuado do atendimento para os casos de obras e urbanização apenas para os casos em que há já empreendimento habitacional vinculado à remoção, transformando em temporários os demais casos. Isso advém do fato de que consolidou-se um cenário de enorme passivo, havendo beneficiários há mais de dez anos recebendo o Auxílio Aluguel sem perspectiva de atendimento.

Moradores da Comunidade da Paz durante reunião sobre ameaça de remoção / Talita Anzei Gonsales

Queremos chamar atenção ao fato de que as mudanças não estão sendo realizadas em favor de um melhor atendimento da população, que tem vivido uma dinâmica de transitoriedade permanente causada pelo cotidiano de remoções nos últimos dez anos no município. Ao invés disso, altera-se a normativa para resguardar o poder público da obrigatoriedade de assegurar o direito à moradia daqueles que tem “se virado”. Assim, parece que a preocupação da Prefeitura é a de tornar mais eficiente, para seus objetivos, um instrumento responsável pela gestão da insegurança habitacional que ela pretende manter.

Consideramos que a mudança da Portaria 131, na verdade, está apenas abrindo as portas para uma mudança maior na regulamentação do atendimento habitacional provisório. A minuta (disponibilizada pela Defensoria Pública) de um Decreto que está para ser aprovado nesse sentido indica que a proposta da gestão Bruno Covas é a de limitar a 5 anos o benefício do Auxílio Aluguel para as famílias removidas de áreas de intervenção pública (obras ou regularização/urbanização), ainda que permaneça o compromisso com a moradia definitiva (sem prazo). Além disso, prevê que o benefício só poderá ser concedido se houver disponibilidade orçamentária, deixando as famílias não atendidas no chamado “Cadastro de Demanda Represada”, ou a “ fila da fila”

Percebemos o que a prefeitura quer não é eliminar o Auxílio Aluguel, como fica parecendo com o corte anunciado, mas sim dar mais efetividade àquilo que lhe interessa do instrumento: ser dispositivo de remoções, dentro de uma política maior de gestão da insegurança habitacional.  Parece ser importante para a Prefeitura que mais famílias sejam atendidas com o mesmo número de benefícios totais concedidos – o que vai aparecer como um “aumento” do atendimento habitacional municipal, mas que na verdade tem o sinal inverso. Para tanto, precisa eliminar agora contratos feitos sob a regulamentação antiga, cuja possibilidade de alcançarem moradia definitiva – e só assim poderem passar a novos beneficiários – é baixa. Isso porque a solução habitacional quase única que a Prefeitura – e o Estado, logo mais o Governo Federal também – tem a oferecer é a PPP, que prevê para esta faixa de renda (HIS1) apenas cerca de 12 mil unidades habitacionais – ou seja, menos da metade da “fila” representada pelos atuais 27 mil auxílios concedidos.

A Prefeitura sabe que não vai atender todos os beneficiários atuais do Auxílio Aluguel, e não sabe o que fazer com eles, pois na medida em que seu contrato com a maioria dessas famílias só termina quando elas forem atendidas definitivamente. Mais do que isso, necessita da liberação do instrumento para novos beneficiários não por causa da urgência habitacional do município, mas porque precisa “liberar” novas áreas para a recém lançada PPP Habitacional Municipal “Casa da Família”. Relatamos no LabCidade que, para a implantação desta PPP, ao menos 3 mil famílias precisam diretamente ser removidas.

Como a Prefeitura fará isso sem o Auxílio Aluguel, que está no limite de sua capacidade de atendimento? Para não mudar o caráter da política habitacional em andamento, procura punir os beneficiários de maneira “truculenta”, nas palavras de Fernanda Pinheiro da Silva, numa atitude desrespeitosa com as famílias. Esta atitude faz parte de um aprofundamento da capacidade de gestão da insegurança habitacional pela Prefeitura, que tende a se aprofundar daqui pra frente.

* Pós-doutoranda na FAU-USP e pesquisadora do LabCidade.