Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Raquel Rolnik*

Nesse último domingo, o jornal O Estado de S.Paulo publicou uma reportagem de André Shalders, Julia Affonso e Vinícius Valfré mostrando que entre 2019 e 2022 o orçamento para compras de caminhões de lixo com recursos do governo federal aumentou 833%, passando de R$ 24 milhões para atuais R$ 200,2 milhões.

Além de indícios de superfaturamento (modelos de caminhões compactadores  idênticos comprados com um mês de diferença por valores maiores em mais de 100 mil reais, por exemplo), esses 453 veículos foram distribuídos para municípios pequenos, para  redutos eleitorais de aliados do governo de forma desconectada  da necessidade real das cidades.

Para além das questões já levantadas pela imprensa, cabe lembrar que caminhões compactadores são apenas uma das alternativas para viabilizar a coleta domiciliar do lixo, já que a quantidade mínima de lixo necessária para viabilizar seu custo de manutenção faz com que ela não seja adequada para todas as situações. A reportagem revela casos como o das cidades alagoanas de Minador do Negrão, que recebeu um caminhão de R$ 361,9 mil que leva dois dias para encher, e Barra de São Miguel, que recebeu três caminhões que ficam parados a maior parte do tempo.

Outros aspectos também devem ser considerados: não é a primeira vez que os recursos federais que deveriam ser usados para implementar uma política de resíduos são transformados em produtos distribuídos de forma desconexa das prioridades reais da realidade socioterritorial de cada lugar. É preciso considerar o ciclo do lixo como um todo: uma política de resíduos envolve desde novas diretrizes para produção e distribuição (medidas como a proibição de uso de sacolas plásticas pelos supermercados, por exemplo), os mecanismos de coleta e também a destinação final.

De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios realizada pelo IBGE em 2019, um em cada dez domicílios (cerca de 20 milhões de brasileiros) não têm acesso à coleta domiciliar e despejam os resíduos diretamente na rua ou na natureza, seja em fossas escavadas no terreno, valas, rios ou no mar. Outra questão absolutamente urgente é a do destino desse lixo. Apesar do Brasil contar com uma Política Nacional de Resíduos Sólidos que se comprometeu acabar com os lixões até 2024, ainda temos pelo menos 3.000 cidades que mantêm lixões a céu aberto, nos quais o lixo é simplesmente jogado sem o manejo adequado de, por exemplo, um aterro sanitário. Mais preocupante ainda, apenas baixíssimos 2,1% do lixo seco que é produzido no país são reciclados (e esse número é ainda menor para o lixo orgânico: 0,2%).

Face a esse índices alarmantes, é ainda mais crucial que a política de distribuição de verbas e recursos atenda às características e necessidades de ponta a ponta no processo de coleta e destinação final do lixo – ao invés de ser  trabalhada, como tem sido historicamente, como distribuição de mercadorias políticas aliadas a favorecimento de empresas fornecedoras de determinados produtos.

* Professora da FAU-USP e coordenadora do LabCidade.