Por Raquel Rolnik*
Pensar na questão do direito das mulheres à cidade é trazer à tona múltiplas camadas de exclusão e desigualdades que marcam de uma forma muito diferente a experiência concreta de homens e mulheres no ambiente urbano. Chamo atenção para a perpetuação da violência de gênero e como o medo é um elemento estruturador na relação das mulheres com a cidade em minha primeira coluna “Cidade para Todos” deste ano, que volta ao ar na Rádio USP quinzenalmente às quintas-feiras, após o período de recesso.
Neste mês que celebramos as mulheres, é importante refletir sobre a forma na qual o ambiente urbano foi construído, que implica em experiências muito distintas quando se trata se homens e mulheres e que se sobrepõe também a raça, homens e mulheres brancas e negras. Desde logo é preciso dizer que a cidade reflete, amplifica e reproduz um olhar masculino e branco de quem a pensou, que corresponde exatamente a quem historicamente deteve o poder de determinação sobre como se organiza os espaços urbanos, à sua imagem e semelhança. Ou seja, a partir das próprias necessidades dos sujeitos masculinos. Por exemplo, a mobilidade, muito determinante para a conformação da cidade é totalmente pensada na relação casa-trabalho e não na multiplicidade de percursos que a maior parte das mulheres têm que fazer.
Não podemos deixar de assinalar o papel do medo na experiência concreta das mulheres que, por exemplo, adotam uma série de cuidados antes de sair de casa. A violência de gênero define horários e percursos: a escolha de trajetos que muitas vezes são mais longos, mas menos perigosos; os horários menos expostos a um transporte superlotado, onde a mulher pode ser vítima de assédio, mesmo que isso implique em acordar mais cedo. A apreensão de passar por uma rua mal iluminada. O que significa concretamente a impossibilidade do pleno direito de ir e vir, um direito básico, mas presente apenas no deslocamento dos homens brancos. Sim, porque o medo de ser abordado pela polícia, por exemplo, também faz parte da experiência concreta dos homens negros.
Se tomarmos um outro tema, a moradia, as mulheres também são as mais vulneráveis. Dados da Fundação João Pinheiro, analisados pelo LabCidade, mostram que 60% dos que vivem em condições inadequadas de moradia hoje no Brasil são mulheres. Mas estamos falando também de mais de 600 mil mulheres que estão ameaçadas de despejo neste país, de acordo com levantamento, divulgado em fevereiro deste ano, pela Campanha Despejo Zero. Aqui trata-se de uma experiência urbana marcada pelo medo de perder a casa, de não ter como e onde proteger e alimentar sua família.
Mulheres de todo o mundo hoje lutam não apenas por salários iguais e ascensão às posições de poder, mas também por um urbanismo feminino e feminista, capaz de refazer este modelo excludente de cidade – que impõe o medo como experiência –, rumo à cidade do cuidado e do acolhimento e da liberdade dos corpos em movimento.
Ouça a íntegra do meu comentário no site da Jornal da USP.
* Raquel Rolnik é arquiteta e urbanista e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e coordenadora do LabCidade
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