Imagem: Rovena Rosa/Agência Brasil

Por Raquel Rolnik*

O Observatório de Remoções, que acompanha há vários anos os processos de remoções coletivas na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), e que também começa a observar os despejos individuais, acaba de lançar um balanço de 2020. Infelizmente, o quadro é bastante preocupante. Em plena pandemia, tivemos 28 remoções coletivas na RMSP, envolvendo quase 3 mil famílias, e 48 ameaças de remoção, com 7 mil famílias. Isso falando apenas daquilo que o Observatório conseguiu registrar, porque seguramente existem muito mais atingidos que não entraram nessa estatística.

Essas remoções foram motivadas, sobretudo, por reintegrações de posse. E aí é importante entender os processos que levam a isso. Muitas pessoas, em função da situação de acentuação das vulnerabilidades socioeconômicas decorrentes da pandemia e sua gestão, não conseguem mais pagar aluguel, e acabam ou saindo de uma vez da casa para não ter que pagar mais, ou então atrasando e acumulando essas mensalidades, de forma que logo são despejadas.

Muitas dessas pessoas tiveram como única alternativa de moradia as ocupações, que foram objeto de reintegração de posse imediata por parte dos seus proprietários. Segundo o Observatório, houve em 2020 o surgimento de novas ocupações e o aumento da procura por espaço em ocupações já existentes. Com a não suspensão das reintegrações de posse no ano pandêmico, muito mais gente passou a morar na rua.

 

Número de famílias removidas na Região Metropolitana de São Paulo em 2020 por justificativa das ameaças, e por trimestre. Incluídos somente casos em que foram identificadas as justificativas das remoções. – Ulisses Castro/Observatório de Remoções, 2021. – Ulisses Castro/Observatório de Remoções, 2021.

Em relação aos números relativos a sentenças de despejos individuais ou unifamiliares, existe uma certa limitação de análise uma vez que a base de dados do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo não especifica se o imóvel é residencial ou comercial. Mas, de qualquer maneira, recortando apenas a Região Metropolitana de São Paulo, foram 10 mil sentenças favoráveis aos despejos no ano passado — 77% do total de sentenças. No artigo Precisamos falar sobre aluguel, apresentamos mais dados sobre os despejos em 2020.

“Detalhe” importante é que, desde junho, uma boa parte dessas sentenças são referentes a processos que começaram no próprio ano de 2020 — chegaram a 72% em novembro —, ou seja, foram processos iniciados e finalizados em plena pandemia, a despeito da situação de vulnerabilidade em que o despejado estaria ao perder sua moradia em um período em que o isolamento social é questão de sobrevivência.

Mês de publicação das sentenças em 2020, por ano de abertura do processo.  -  Pedro Mendonça/Labcidade (Reprodução Quatro Cinco Um) -  Pedro Mendonça/Labcidade (Reprodução Quatro Cinco Um)
Mês de publicação das sentenças em 2020, por ano de abertura do processo. – Pedro Mendonça/Labcidade (Reprodução Quatro Cinco Um) – Pedro Mendonça/Labcidade (Reprodução Quatro Cinco Um)

Nós estamos falando de milhares de famílias em São Paulo sofrendo perdas do acesso à moradia. E nesse contexto, infelizmente, políticas públicas absolutamente necessárias — como a suspensão destes despejos e remoções, seja por parte do judiciário, seja por parte de um projeto de lei nacional ou a nível mais local —, não foram e não estão sendo implementadas. Esta discussão está presente em diversas instâncias do legislativo, inclusive na Assembleia Legislativa de São Paulo, em que temos o Projeto de Lei 146/2020 — que determina a suspensão do cumprimento de mandados de reintegração de posse, despejos e remoções judiciais ou extra-judiciais durante a pandemia —, que ainda está em processo de votação das emendas para ser sancionado ou não. Espero então que ele, e outros similares, como o PL 1975/2020 (federal), que deve ser votado nos próximos dias, sejam aprovados o mais rápido possível.

Por fim, com a sanção presidencial do Orçamento de 2021, tivemos a péssima notícia de que os recursos para a construção habitacional de casas populares da Faixa 1 (famílias que ganham até 1.800 reais), que é a faixa de renda mais baixa dos programas habitacionais, foram praticamente zerados. Com o corte de 1,5 bilhão pelo presidente Jair Bolsonaro, o Fundo de Arrendamento Residencial, que financiava as moradias da Faixa 1, ficou reduzido a 27 milhões de reais, o que é absolutamente insuficiente sequer para continuar as 200 mil obras de construção das moradias já contratadas e iniciadas.

Sem proteção, sem recursos para habitação, o cenário é vermos, a cada dia, multiplicar-se o número de famílias morando nas ruas.

* Professora da FAU-USP, coordenadora do LabCidade. Coluna originalmente publicada no UOL.