Por Guilherme Lobo Pecoral, Talita Anzei Gonsales, Débora Ungaretti, Júlia do Nascimento de Sá*
O terceiro trimestre de 2021 foi marcado pelo desrespeito, por agentes públicos de governos e do judiciário paulista, à decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) na ação que questionou a constitucionalidade das remoções na pandemia, chamada Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 828. Dentre as 9 remoções identificadas no período pelo Observatório de Remoções, ao menos 6 descumpriram a decisão, o que representa pelo menos 400 famílias da Região Metropolitana de São Paulo, entre julho e setembro de 2021, que foram desalojadas de forma inconstitucional.
Em parte desses casos, as remoções se apoiam nas brechas e exceções da decisão: ocupações posteriores a março de 2020 ou em situação de risco. Porém, mesmo para estas, as remoções foram condicionadas pelo STF à oferta de uma alternativa habitacional que resultasse em uma moradia adequada – sem isso, seriam consideradas ilegais. A decisão na ADPF não deixa dúvidas em relação a isso: ”com relação às ocupações ocorridas após o marco temporal de 20 de março de 2020, referido acima, que sirvam de moradia para populações vulneráveis, o Poder Público poderá atuar a fim de evitar a sua consolidação, desde que as pessoas sejam levadas para abrigos públicos ou que de outra forma se assegure a elas moradia adequada”.
Ainda assim, remoções sem a garantia de atendimento habitacional adequado não deixaram de acontecer. Na maioria dos casos, as secretarias de habitação ou de assistência social sequer participam das reuniões organizadas pelos batalhões da polícia militar, responsável pela viabilização das remoções. Identificamos casos de descumprimento da ADPF na zona leste de São Paulo, em Itapecerica da Serra e em Santo André, viabilizados por via extrajudicial ou judicial, todos sem oferta de alternativa aos moradores – ou seja, despejando-os à situação de rua ou de precariedade habitacional em algum outro lugar. Exemplo disso são as remoções forçadas de famílias que viviam em recentes territórios populares nos distritos de Vila Prudente, Iguatemi e José Bonifácio da região Leste da cidade, as quais foram executadas de maneira violenta e sem atendimento habitacional à população afetada. Outro caso exemplo ainda na RMSP é o da Rua da Torre, localizado no município de Santo André
A ocorrência de remoções sem oferta de atendimento habitacional digna é a reprodução de uma prática recorrente, que repete um padrão histórico que alimenta ciclos de remoções e novas ocupações precárias. A falta de alternativas faz as famílias procurarem abrigo nos locais que restam na cidade, ocupando espaços com condições adversas de segurança, saúde e habitabilidade, casos de situações na Zona Norte e no Centro de São Paulo.
A decisão do STF na ADPF 828 acerta ao considerar, em primeiro lugar, a situação de gravidade mais severa durante a pandemia – o despejo ou remoção tende, por motivos óbvios, também a acirrar a circulação da covid-19. Nesse sentido, a oferta de ”abrigos públicos” ou ”outras formas de moradia adequada” visam justamente a garantir o isolamento, bem como diversos outros direitos relacionados à moradia.
Se por um lado houve casos de descumprimento, por outro, a decisão liminar foi respeitada em outros momentos, nos quais teve o efeito de suspender uma série de remoções. A Campanha Despejo Zero já identificou 13 casos de suspensão de remoções que tiveram como base a liminar da ADPF 828. Dentre elas, 7 ocorreram no estado de São Paulo.
Na Zona Leste da cidade de São Paulo, a ocupação Jorge Hereda, constituída após o marco temporal da ADPF, é representativa da aplicação da decisão. Com a incidência política da Campanha Despejo Zero, a remoção, que já havia sido determinada, foi levada ao STF via recursos judiciais, onde foi suspensa, justamente por não haver alternativa habitacional adequada às cerca de 800 famílias ameaçadas. O Supremo reconheceu, inclusive, que os ”abrigos públicos” disponíveis em São Paulo não são capazes de cumprir essa função, em especial em relação ao necessário isolamento social imposta pela atual pandemia.
Diante desse contexto, a recente aprovação da Lei 14.216, que também suspende despejos e remoções em áreas urbanas, reforça o que já era evidente: a urgência que os órgãos administrativos e judiciários cumpram rigorosamente a decisão da ADPF 828. O PL 827 havia sido vetado por Bolsonaro também neste trimestre, mas após pressão popular e articulação política envolvendo a Campanha Despejo Zero e outros atores, o veto foi derrubado no Congresso ao final de setembro. A partir do dia 7 de outubro de 2021, as remoções coletivas, judiciais ou não, e as liminares de despejos em áreas urbanas devem ser suspensas até o dia 31 de dezembro do mesmo ano. É importante ressaltar que essa é uma conquista fundamental, mas ainda é preciso avaliar a necessidade de prorrogação desses prazos, já que mesmo com o avanço da vacinação e diminuição do número de casos e óbitos no Brasil, a situação pandêmica ainda pede cautela.
* Guilherme é Graduando em Direito-USP, pesquisador do LabCidade; Talita é doutoranda na UFABC, integrante do LABJUTA-UFABC e pesquisadora do Observatório de Remoções; Júlia é Bacharela em Gestão Ambiental (EACH-USP) e pesquisadora do Observatório de Remoções; Débora é doutoranda na FAU-USP e pesquisadora do LabCidade;
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