Foto: Andrés Ampudia

Paula Freire Santoro* 

Em setembro, o LabCidade FAUUSP, com apoio do COES (Centro de Estudios de Conflicto y Cohesión Social) e do Instituto de Estudios Urbanos y Territoriales (PUC), do Chile, e da Pró-Reitoria de Pesquisa da USP, organizou o “Seminário Internacional Moradia de Aluguel na América Latina: Estado, finanças e mercados populares”, cujos vídeos encontram-se disponíveis no Youtube.

Como já abordado em post anterior, vários dos trabalhos que olharam para as políticas de aluguel, ora estavam concentrados em duas vertentes de estudos mais comuns – uma que trata dos programas de locação e outra do aluguel temporário provisório, cujas experiências em São Paulo e Belo Horizonte reapareceram no debate – ora mostraram uma variedade de desenhos e enlaces com políticas como as voltadas para utilização de imóveis vazios ou desabitados (na Mesa 4 ou Mesa 5), ou de requalificação de bairros centrais e recuperação de edifícios históricos (Mesa 1), ou como uma etapa nas políticas de compra e venda de habitação.

Olhando para o quadro apresentado, chamou a atenção o número de trabalhos que analisou o papel dos técnicos que fazem a gestão da política pública na proposta, concepção, desenho, gestão e implementação de diversos programas de locação social. Dois destes trabalhos apresentaram os técnicos e o poder público como um agente ativo no processo de locação, inclusive através do desenho de “imobiliárias sociais”, onde o poder público encontra o imóvel, faz a gestão do aluguel, indica as famílias beneficiárias e diminui os riscos dos proprietários, estimulando-os para integrarem o banco de imóveis com suas propriedades.   

As decisões dos técnicos criaram repertórios para a implementação da política pública (ações discricionárias), e os trabalhos apresentados mostraram que inclusive existe um certo ativismo dos mesmos em torno das políticas de aluguel, que aparecem pautadas pelos técnicos, mais do que por uma reivindicação dos movimentos sociais por moradia. As ações dos técnicos estudadas construíram regulação, procedimentos e formas de gestão, para o processo de implantação de políticas de aluguel.

Dentre eles, encontra-se o caso descrito do programa de locação da Cohab de São Paulo, ou mesmo de uma participação ativa e propositiva de técnicos da Urbel organizados em um Coletivo em Belo Horizonte, ou ainda na estruturação de uma “imobiliária social” pública na cidade do México – na concepção, regulação e  gestão dos programas, sinalizando o desinteresse dos movimentos sociais e produtores de novas unidades habitacionais por estas políticas, ao mesmo tempo que mostravam as potencialidades das mesmas, mesmo que ainda muito pontuais e iniciais, para solucionar desafios de ofertar moradia para os mais vulneráveis, aproveitando-se de imóveis já existentes no mercado.

Dentre estes trabalhos está o de Lucas Meirelles Toledo Ramos Batista e Vitor Estrada de Oliveira (FGV SP), apresentado na Mesa 3, que mudou as lentes de observação da política de locação em São Paulo – usualmente voltadas para aferir os desafios de ganhar escala em uma experiência tida como “piloto” por apresentar apenas 7 empreendimentos de locação (cerca de 900 unidades habitacionais) – ao colocar foco nas práticas dos técnicos da Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo (Cohab-SP). 

A partir da experiência de um deles com a gestão pública e de entrevistas e outras formas de registro, observaram a fase de implementação da política. Mostraram que os técnicos ajudaram a encontrar formas de renegociação das dívidas previstas em contrato ou do próprio contrato, evitando que o beneficiário perdesse o subsídio por inadimplência (o que exigiria uma reintegração de posse geralmente demorada e custosa para a Cohab) e garantindo a sua permanência. Que privilegiaram pequenas reformas – mais rápidas e fáceis, menos estruturais e custosas que exigiriam recursos e licitações para contratação mais complexas, como por exemplo, para refazer telhado ou outras questões estruturais – ou a realização de ações de manutenção condominial menores através de uma “vaquinha” com recursos dos moradores, contornando processos licitatórios demorados. Foram as ações que estão nas mãos dos técnicos de médio escalão, discricionárias, necessárias para a política continuar a ser implementada, que terminaram por criar procedimentos e ajustar o desenho do Programa, permitindo sua implantação.

A experiência de locação em Belo Horizonte foi apresentada por Marina Sanders Paolinelli, Luís Tôrres Barros e Lisandra Mara Silva, a partir da perspectiva do Coletivo Habite a Política, também na Mesa 3, em mais um trabalho que observou a influência dos técnicos na construção das propostas de regulação de um programa de locação. O Coletivo reconheceu que os movimentos de moradia não pautavam a política de aluguel e sim de casa própria; procurou fugir das políticas que visavam apenas estimular a produção imobiliária de novas unidades, mesmo que fosse para aluguel, sugerindo propostas de locação social que envolveriam imóveis públicos, privados e de organizações da sociedade civil, aproveitando o parque imobiliário disponível. Também procurou criticar os auxílios temporários precários em curso, ao buscar segurança e permanência na oferta da locação. O Coletivo partiu de uma mobilização de técnicos militantes que fizeram greves, organizam seminários, geram propostas aos candidatos e, ao comporem o Conselho Municipal de Habitação, propõem um Programa de Locação Social em uma resolução que vira posteriormente um Decreto de Locação Social (Decreto n. 17.150/2019).

Para a proposta, preocuparam-se com a capacidade institucional, consideraram as restrições orçamentárias – em 2019 menos de 1% do orçamento municipal foi destinado à moradia –, fizeram discussões com movimentos sociais, definindo que o público beneficiário deveria ser o de maior vulnerabilidade. Propuseram aproveitar os imóveis vacantes e as dinâmicas de aluguel que já aconteciam na cidade. Assim, conceberam um modelo que funcionaria a partir de uma espécie de “imobiliária pública”, com imóveis indicados por inquilinos ou chamamentos públicos, com valores tabelados em avaliações técnicas das moradias (ou seja, os valores seriam determinados pelo poder público), que possibilitaria diferentes características dos imóveis – como tamanho, localização – aproximando-se da diversidade dos formatos das famílias a serem beneficiadas e dos desejos de localização e de possibilidade de mudança de endereço. Ainda que não tenham organizações da sociedade civil atuantes na provisão habitacional, pensaram que estas poderiam seriam proprietárias e/ou gestoras, inspiradas por exemplo no modelo do Fundo FICA em São Paulo. O programa está no seu início, focado na modalidade privada, com um número baixo de famílias atendidas e com o teto de pagamento de aluguel baseado no teto do “subsídio ao locatário” de 500 reais.

Outro trabalho que mostra a ação do poder público foi o apresentado por Andrés Ampudia na Mesa 4 sobre a locação social em imóveis privados gerida pela Prefeitura da cidade de Tlajomulco de Zúñiga no México, município periférico da área metropolitana de Guadalajara. Este caso insere-se num grupo de trabalhos apresentados que posicionaram o aluguel como uma opção de uso para  imóveis vazios ou desabitados fruto de grandes políticas de produção massiva de novas moradias, como no caso de Tlajomulco de Zúñiga no México (na Mesa 4), ou de aluguel sobre imóveis produzidos no âmbito do Programa Minha Casa Minha Vida em Natal no Rio Grande do Norte (apresentado por Beatriz Medeiros Fontenele e Carina Chaves, na Mesa 5).

Diferentemente do processo de compra de imóveis vazios ou subutilizados que se deu na Europa e Estados Unidos após a crise de 2008 por senhores corporativos, como já comentado em post anterior, esta cidade no México criou uma “imobiliária social municipal”, com o poder público mediador entre quem aluga e quem precisa de moradia. Neste caso, a rentabilidade desejada da moradia como negócio é mantida, com segurança e diminuição de riscos para os proprietários.

Andrés Ampudia contou inicialmente que o México é conhecido pelos programas de produção de novas unidades em quantidade, nos moldes da política chilena ou brasileira (como o Programa Minha Casa Minha Vida) e Tlajomulco foi o município que recebeu mais recursos para a compra de novas moradias, cerca de 200 mil financiamentos à moradia (para dimensionar, fizeram mais habitação em Tlajomulco que em 20 estados do México). Entre 2000 e 2016 o parque habitacional do município cresceu cerca de 675%, passando de 25 mil vivendas em 2000, para 198 mil em 2016. Este crescimento exponencial ultrapassou a capacidade administrativa e de gestão pública, e a quantidade de moradias desabitadas no país cresceu muito (a cidade fica em 3º lugar dentre as que possuem mais imóveis desabitados).

Viram isto como uma oportunidade e estruturaram a gestão pública, criando um programa de locação social sobre imóveis privados através de uma imobiliária social municipal. Criaram o Instituto para el Mejoramiento del Hábitat de Tlajomulco em 2019, um organismo público descentralizado para operar políticas públicas e sociais. Estudaram as características das moradias desabitadas, e descobriram várias em bom estado e já pagas ou com crédito vigente (dentre outras que estavam em processo de recuperação ou abandonadas), que não estavam no mercado para uso. Identificaram vários tipos de proprietários, alguns dos quais não estavam interessados em habitar a moradia que adquiriram – que ele chama de “patrimonialista” (adquirindo propriedades para ampliar seu patrimônio familiar, por exemplo) ou “investidor”. Ao perguntar-lhes porque não alugavam suas casas, alguns argumentaram que a experiência do aluguel envolvia inadimplência, dificuldade de retirar os moradores inadimplentes, desconfiavam dos inquilinos, queriam segurança. Assim nasceu o programa “Renta tu casa” (em português, “Aluga a tua casa”), que proveria um aluguel acessível para pagar o custo do aluguel no mercado de uma moradia adequada para diferentes perfis socioeconômicos. Foi o primeiro passo para a criação de uma “imobiliária social municipal” que faz a gestão destes alugueis.

O governo tem um papel ativo, considera-se um “mediador” entre proprietários e beneficiários: paga o pagamento do aluguel ao proprietário, por seis meses renováveis por mais seis; ajuda na manutenção dos imóveis e no cumprimento do pagamento de tributos pelos proprietários dos imóveis que foram selecionados pelo governo como estando em boas condições. Os inquilinos pagam consumo de energia. Começaram pelos menos favorecidos como beneficiários. Em um ano já tinham 70 casas alugadas e tem lista de espera de 360 famílias, pois a seleção dos imóveis e negociação com os proprietários tem sido morosa. O desafio também tem sido o de habilitar alguns imóveis.

Ciente que o programa foca nos imóveis para “investimento” ou “patrimonialistas”, investem num processo de negociação com o proprietário para a definição das condições do aluguel, inclusive do valor a ser pago, como conta Andrés Ampudia, deixando que o preço atinja valores de mercado, mantendo a rentabilidade.

Se estas experiências parecem avançar muito no desenho de um papel ativo dos técnicos e dos governos na construção e gestão de um parque imobiliário para o aluguel, a inflação dos preços – que certamente virá promovida pelos vouchers, subsídios e outros formatos de pagamento público de aluguel apresentados no seminário – pode vir a limitar o número de imóveis alugados e, portanto, a política. Um dos desafios futuros da gestão pública, portanto, será não estar submetida às lógicas de rentabilidade do mercado imobiliário, procurando inferir de forma a determinar preços ou regular o aluguel – estabelecendo um valor teto máximo, por exemplo – e limitar preços abusivos para que, de forma consciente, não alimente o “patrimonialismo” e os “investimentos em imóveis”.

*Professora da FAU-USP e coordenadora do LabCidade.