Paula Freire Santoro*
No último mês de setembro, o LabCidade FAUUSP, com apoio do COES (Centro de Estudios de Conflicto y Cohesión Social) e do Instituto de Estudios Urbanos y Territoriales (PUC), do Chile, e da Pró-Reitoria de Pesquisa da USP, organizou o “Seminário Internacional Moradia de Aluguel na América Latina: Estado, finanças e mercados populares”, que contou com 13 mesas de apresentação oral de 56 trabalhos selecionados, além de palestras de abertura e encerramento com palestrantes convidados. Sintetizamos alguns temas importantes apresentados em algumas postagens, como um guia de exploração ao registro do seminário, que está disponível integralmente online, nos Anais de Resumos Expandidos, e nos vídeos das apresentações orais no nosso canal do Youtube. Este é o terceiro texto, que revisita os trabalhos apresentados nas três mesas que trataram das políticas públicas de aluguel (Eixo 2) no Seminário – Mesa 3, Mesa 4 e Mesa 5 – que permitiram traçar um panorama da variedade de experiências apresentadas. Acesse aqui o primeiro, sobre Mercados Populares de Locação na América latina, e o segundo, sobre financeirização da moradia.
Os trabalhos que abordaram experiências de políticas brasileiras concentraram-se em duas vertentes principais de estudos: uma que trata dos programas de locação e outra que fala do aluguel temporário provisório – cujas experiências em São Paulo e Belo Horizonte reapareceram no debate com força no seminário, especialmente na Mesa 3. Os casos foram apresentados a partir de metodologias de estudos de políticas públicas, observando o papel dos técnicos que fazem a gestão das políticas, a importância de suas decisões de trabalho que terminam criando repertórios para a implementação da política pública (ações discricionárias), e inclusive, um certo ativismo dos mesmos em torno das políticas de aluguel – mais do que por uma reivindicação dos movimentos sociais por moradia. A ação dos técnicos apresentadas terminaram por construir regulação, procedimentos e formas de gestão, para o processo de implantação de políticas de aluguel em um cenário latino-americano onde a casa própria foi historicamente – e ainda é – o carro chefe.
Para além destas duas mais disseminadas no Brasil (de locação social ou aluguel provisório), foram apresentados vários outros desenhos de políticas. Por exemplo, as novas modalidades de políticas de aluguel propostas no Plano de Habitação do município de São Paulo de 2016, apresentadas por Tales Fontana na Mesa 3. A experiência de locação de Belo Horizonte apresentada pelo Coletivo da Cidade, que trouxe uma diversidade de propriedades – públicas, privadas, coletivas – que podem ser utilizadas para aluguel e programas associados. Também foi apresentada uma proposta já muito desenvolvida para política descentralizada em distritos de Bogotá, na Colômbia, apresentada no Seminário por Adriana Marcela Parias Duran e Natalia Valencia na Mesa 5. Ou outra ainda em fase de projeto, trazida por Maía Susana Grijalva para Ambato no Equador, na Mesa 4.
Um grupo de trabalhos apresentados enfocou o aluguel através de seu enlace com as políticas de compra. Por exemplo, como nas experiências de políticas de locação como um passo para a compra, como as políticas de leasing. É o caso da política de Leasing Habitacional do Chile, apresentada por Viviana Fernandez na Mesa 4, uma forma de aluguel com possibilidade de compra voltada principalmente para jovens, idosos e migrantes. A autora concluiu, no entanto, que tal modelo terminou sendo mais caro para os beneficiários (mesmo que com os subsídios para o leasing) e deixando uma pergunta no ar: seria esta uma política de aluguel ou de compra?
Outro grupo são os trabalhos que posicionam o aluguel como uma opção de uso para imóveis vazios ou desabitados, fruto de grandes políticas de produção massiva de novas moradias – caso de Tlajomulco de Zúñiga no México (na Mesa 4). Ou de aluguel sobre imóveis produzidos no âmbito do Programa Minha Casa Minha Vida em Natal no Rio Grande do Norte, apresentado por Beatriz Medeiros Fontenele e Carina Chaves, na Mesa 5.
Diferentemente dos grandes senhorios corporativos que se aproveitaram do esvaziamento de imóveis na Europa e nos Estados Unidos pós crise de 2008, já comentados em post anterior, apareceram experiências nas quais o poder público criou uma “imobiliária social municipal”, sendo o mediador entre quem aluga e quem precisa de moradia, como neste caso do México citado. Neste caso, a rentabilidade desejada da moradia como negócio é mantida, com segurança e diminuição de riscos para os proprietários.
Políticas de aluguel também apareceram como parte de políticas ou propostas de requalificação de bairros centrais e recuperação de edifícios históricos em vários trabalhos apresentados naMesa 1. É o caso de Santiago do Chile, apresentado por Jaime Pujol Carabantes, ou várias apresentações sobre Recife, apresentadas por Iana Ludermir, Larissa Rodrigues de Menezes, Norma Lacerda e Luanancy Lima Primavera.
Aparecem também diferentes atores na gestão destas políticas. São propostas de diferentes desenhos de empresas públicas que fazem a gestão da política de aluguel, como a Empresa Pública Municipal de Habitat y Vivienda del Gobierno Autónomo desenhada para Ambato no Equador, apresentada por María Susana Grijalva. Ou a “Imobiliaria social municipal” de Tlajomulco de Zúñiga, no México, ambas apresentadas na Mesa 4. Ou opções à gestão pública, feitas por organização da sociedade (OS) em Belo Horizonte, ou mesmo gestão comunitária através do uso do instrumento do Community Land Trust descrito na Mesa 12 que se apresenta não apenas uma opção de propriedade coletiva, mas de gestão comunitária da moradia.
Há diferentes atores que seriam beneficiários destas políticas. Os grupos sociais mais vulneráveis foram apontados como foco ideal das políticas de aluguel. A locação como uma possibilidade habitacional para moradores da rua, por exemplo, apareceu na experiência de São Paulo descrita por Mauricio Bárcenas, na Mesa 3, e por Giulia Pereira Patitucci e Juliana Veshagem Quarenta na Mesa 13 que tratou dos ativismos ligados à moradia.
Mas se os mais vulneráveis devem ser o público alvo das políticas, estes não parecem ser os arrendatários de hoje. Adriana Marín Toro, Felipe Link e Felipe Valenzuela apresentaram um trabalho, na já citada Mesa 4, que construiu um perfil de arrendatários no Chile: são imigrantes pobres com filhos menores de idade, mas também profissionais, de classe média e idosos. No perfil dos beneficiários das políticas descritas – como a de Tlajomulco no México, Santiago do Chile ou Belo Horizonte no Brasil –, para além dos moradores de rua também aparecem os migrantes/imigrantes, as vítimas de violência doméstica / de gênero, os chefes de família monoparentais com filhos – geralmente chefiadas por mulheres, já que os homens se casam novamente – e idosos. Ou também para os que se encontram em uma situação transitória à espera de uma moradia definitiva, frequentemente associada à ideia da casa própria, como descrito na experiência de Santiago do Chile ou nas de São Paulo e Belo Horizonte.
Ironicamente, se o aluguel é pensado para uma diversidade de grupos sociais considerados mais vulneráveis, também é usado para viabilizar processos de remoção que frequentemente incidem sobre estes mesmos grupos. Trabalhos sobre São Paulo e Belo Horizonte, que possuem modalidades de aluguel provisório, apontaram essa relação intrínseca com processos de remoção movidos por obras e políticas públicas, inclusive de habitação. Lisandra Mara Silva, Gustavo Sapori Avelar e Flaviano Luiz Milagres Araujo, representantes da Urbel de Belo Horizonte, trouxeram, em sua apresentação, na Mesa 3, as modalidades de aluguel que fornecem abrigo temporário para famílias removidas em função de obra pública – servindo como suporte inclusive da própria Urbel, que faz a política habitacional! –, vítimas de calamidade pública, população de rua e mulheres em situação de violência (incluído em 2019 mas ainda não normatizado), entre outros critérios. Tales Fontana, também na Mesa 3, apresentou o boom do Auxílio Aluguel em São Paulo – desde sua origem em 2013 e apogeu, em 2016, com quase 31 mil famílias – como associado a uma forte onda de remoções promovidas pelos programas de urbanização da Prefeitura, sem provisão habitacional correspondente, promovendo um desequilíbrio entre remoções e reassentamentos. Trouxe dados concretos: 76% dos casos entraram entre 2010 e 2015, e 82,8% dos beneficiários vieram de urbanização de favelas.
Os governos também têm sido pressionados pelo poder judiciário e procurado regrar ou intermediar as relações entre proprietários e locatários. A mesa que tratou da crescente judicialização das relações de aluguel – dos preços abusivos cobrados aos processos de despejos e remoções por falta de pagamento – mostrou que estas experiências foram atualizadas e acirradas neste contexto da pandemia de Covid-19, mas que os governos ainda não tomaram medidas que envolvam o controle dos preços dos aluguéis.
A regulação dos preços de alugueis quase não apareceu. Estamos em meio à pandemia de Covid-19, não seria este um momento chave para controlar preços e, ao invés de garantir as rentabilidades imobiliárias, garantir a permanência das pessoas em suas casas?
Apenas a proposta de locação em Belo Horizonte – apresentada pelos representantes da Urbel de Belo Horizonte já citados – mostrou uma intenção clara de controlar o mercado de aluguéis dos imóveis privados que compõem o banco de imóveis, que ainda é pequeno. Foi estipulado o controle do valor da locação dos imóveis de locação privada – entre o sugerido pelo proprietário e o valor máximo de locação – de forma a evitar a inflação dos imóveis a serem inseridos no programa. E não é qualquer imóvel que entra no banco, há um sistema de pontos para os critérios de avaliação da inclusão ou não dos imóveis no programa.
A inflação dos preços promovida pelos vouchers, subsídios e outros formatos de pagamento público de aluguel foi comentada em várias mesas. Os valores pagos pelo poder público são baixos – entre 400 e 650 reais – se comparado aos valores desejados pelos proprietários / mercado imobiliário, geralmente exigindo complementações por parte das famílias, e gerando um aumento do preço dos alugueis. Ou os governos tentam manter a rentabilidade desejada dos proprietários. Até a proposta da imobiliária social de Tlajomulco de Zúñiga, no México (Mesa 4), paga aos proprietários o valor de mercado demandado pelos proprietários, e, de forma consciente, reflete que estão alimentando o “patrimonialismo” e os “investimentos em imóveis”, desafios futuros a serem enfrentados pela gestão pública.
O volume, a diversidade e a riqueza do que foi apresentado sinaliza que: se a América Latina não vem de uma trajetória de políticas de aluguel, há um laboratório de experiências em curso! Convidamos a todos a assistir as apresentações disponíveis em vídeo no Youtube.
* Professora da FAU-USP e coordenadora do LabCidade.
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