Por Adriana Marín-Toro e Raquel Rolnik*
No último mês de setembro, o LabCidade FAUUSP, com apoio do COES (Centro de Estudios de Conflicto y Cohesión Social) e do Instituto de Estudios Urbanos y Territoriales (PUC), do Chile, e da Pró-Reitoria de Pesquisa da USP, organizou o “Seminário Internacional Moradia de Aluguel na América Latina: Estado, finanças e mercados populares”, que contou com 13 mesas de apresentação oral de 56 trabalhos selecionados, além de palestras de abertura e encerramento com palestrantes convidados. Sintetizamos alguns temas importantes apresentados em algumas postagens, como um guia de exploração ao registro do seminário, que está disponível integralmente online, nos Anais de Resumos Expandidos, e nos vídeos das apresentações orais no nosso canal do Youtube. Este é o segundo texto; acesso aqui o primeiro, sobre Mercados Populares de Locação na América latina.
Quando falamos em financeirização da moradia, nos referimos a um processo global. Após a crise das hipotecas de 2008, foram criados novos caminhos para a formação de capital, dando lugar a uma reconfiguração da financeirização da moradia onde o aluguel se constituiu como uma nova fronteira. Esse processo foi descrito principalmente em cidades do centro do capitalismo e o Seminário foi uma oportunidade para explorar o que estava acontecendo na América Latina com relação à locação financeirizada, um fenômeno global, mas que tem suas expressões locais particulares. Conseguimos conhecer algumas tendências da região principalmente nas mesas 7, 8 e 9 do seminário, onde foi possível falar sobre a expressão da financeirização do aluguel de imóveis na América Latina no complexo imobiliário e no mercado formal, mas também presente nos mercados populares e nas políticas públicas.
A abertura do Seminário começa com a apresentação da Professora Desirée Fields, Professora do Departamento de Geografia da Universidade da Califórnia, Berkeley, Estados Unidos, que escreveu sobre a financeirização de moradias para aluguel. Sua presença nos permitiu dialogar com os processos globais de financeirização e compreender a inserção desse fenômeno em nossas cidades localizadas na periferia do capitalismo. Do que foi apresentado pela professora Fields, destacamos três ideias principais: 1) A gestão de uma grande carteira de aluguéis através de plataformas automatizadas; 2) A formação dos proprietários corporativos; 3) A ligação entre violência financeira e violência racial.
Com ênfase nos Estados Unidos, a professora Desirée Fields mostra como a casa unifamiliar, tão característica da paisagem suburbana norte-americana, tornou-se protagonista de um novo modelo de moradia financeirizada. Os investidores privados foram capazes de construir grandes carteiras de casas unifamiliares hipotecadas e emitir títulos lastreados pelos fluxos de renda de aluguel. Se por um lado as moradias unifamiliares já faziam parte desse mercado, elas nunca haviam sido apropriadas pelos investidores e em grande escala.
Uma transformação desse tipo só é possível com o avanço tecnológico que simplifica o processo de aluguel e gestão imobiliária, permitindo a concentração institucional da propriedade e seu controle por gestores de ativos financeiros, que se tornam proprietários corporativos automatizados.
Na mesa 7, “Agentes financeiros, Estado e mercados de locação residencial”, o trabalho de Isadora Guerreiro e Raquel Rolnik – “Do senhorio corporativo ao território popular: o aluguel entre a política pública, a informalidade e as finanças” – mostra como a nova fronteira da financeirização da moradia de aluguel chega aos mercados residenciais de São Paulo, mesmo nos mercados populares, e o papel das plataformas digitais nessa configuração. O aluguel torna-se uma forma de posse desnacionalizada e privatizada, permanecendo fora das leis nacionais e, nesse sentido, a plataforma digital consegue conectar a formalidade com a informalidade.
Nesta mesma linha foram apresentados três trabalhos que abordam o caso do AirBnb, plataforma de aluguel digital de curto prazo presente em diferentes cidades do mundo. Na mesa 7, Bianca Tavolari, Vitor Nisida e Henrique Wang apresentaram “Uma análise empírica das decisões judiciais em torno do AirBnb: entre a locação e o hotel”, em que ressaltam que esta plataforma está longe da suposta economia compartilhada pois, mais do que um empreendimento doméstico, é um espaço privilegiado para transações de empresas, vinculado a um grande número de unidades habitacionais inteiras, com um uso comercial muito significativo, que não diferencia pessoas físicas e jurídicas.
Foto: Paula Santoro
Na Mesa 9, “Circuitos locais e globais no mercado de aluguéis”, encontramos o trabalho de Rosalba González Loyde: “De la economía colaborativa al desplazamiento de la vivienda en renta”. Com base nos dados fornecidos pela Inside AirBnb, o trabalho abordou algumas tendências presentes na Cidade do México relacionadas a esta plataforma – onde, em geral, não se alugam espaços compartilhados, mas sim moradias inteiras. Além disso, 30% dos anfitriões não moram na Cidade do México e 8% nem mesmo residem no país. Ainda nesta mesa, o trabalho de Aline Miglioli se relaciona ao tema das plataformas e à introdução da financeirização “desde baixo”, chamado “As implicações do turismo no mercado imobiliário e a reestratificação social em Cuba após 2011”. Ela revela uma série de transformações econômicas e sociais em Cuba ligadas à abertura ao investimento estrangeiro, ao turismo, à introdução de remessas e ao trabalho autônomo, onde o AirBnb tem um papel importante, apesar da propriedade estatal do solo.
Outro ator relevante que a professora Fields menciona neste contexto da moradia em aluguel financeirizada é a entrada dos corporate landlord ou proprietários corporativos. Nos países centrais da economia global, os bancos tiveram um papel ativo na transformação do mercado de aluguel através da aquisição de grandes carteiras de casas, e a criação de novos intermediários no mercado e sua influência saiu de suas fronteiras nacionais, dando um caráter global a este processo.
Particularmente, a Mesa 8: “Investidores corporativos no mercado de aluguel” deu exemplos destes atores, que estão modificando o mercado de aluguel privado nas principais cidades brasileiras e chilenas. O trabalho de Luanda Vannuchi, “Construídos-para-alugar no centro de São Paulo? Primeiras evidências da emergência de um novo modelo de produção imobiliária e notas para uma agenda de pesquisa” assinala, a partir do conceito de build-to-rent, uma série de novas construções no centro da cidade de São Paulo destinadas ao aluguel, mostrando ser este um negócio lucrativo e em ascensão – o que traz consigo, além de novas tipologias de moradia, novas formas de investimento e gestão do aluguel.
Outro caso apresentado no seminário é a presença de edifícios multifamily em Santiago do Chile, cujo dono é apenas um proprietário corporativo. Sobre a entrada deste tipo de proprietário, foram apresentados os trabalhos de Vitor Hugo Tonin e Adriana Marín-Toro, “Imobiliário em transe o papel do aluguel residencial no Chile” e “Nuevos mercados de arriendo privado: crecimiento de los corporate landlords”, respectivamente. Sendo trabalhos similares, Vitor enfatiza que a entrada da moradia em aluguel no Chile se deve ao fracasso do modelo chileno de solução habitacional em propriedade privada por meio do uso de crédito, baseando-se no aumento do déficit habitacional no Chile e no estancamento do crescimento da moradia própria. Por sua parte, a apresentação de Adriana enfatiza a presença de proprietários globais no Chile e no Brasil como, também, o fluxo de capitais entre países da América Latina, promovendo esta modalidade de aluguel corporativo e financeirizado.
Outro processo no Chile é o protagonismo de pequenos investidores no mercado privado de aluguel, chamados “formigas”; enfatizando a rentabilidade que significa hoje ter uma propriedade destinada ao aluguel e, por outro lado, o estímulo existente para investir em propriedade frente a um débil sistema de pensões existentes neste país. Para estes casos, veja as apresentações da Mesa 9: “Circuitos locais e globais no mercado de aluguel”, onde Andrés Senoret Swinburn, Luis Fuentes, Marcelo Bauzá, Pablo Weiner e Salvia Monsalves trabalharam descrevendo atores e fazendo uma análise socioespacial chamada “Análisis del mercado de arriendo en el AMS: financiarización e inversionifisticación”, enquanto Nicolás Vergara Arribas apresenta uma proposta mais qualitativa sobre “¿Busca departamento para vivir o para inversión?: la industria de los pequeños inversionistas de vivienda en Santiago, Chile”.
Por último, existem apresentações que destacam a apropriação de fundos públicos sob a justificativa de um suposto benefício da habitação social, porém que abre caminho à nova fronteira de moradia financeirizada em aluguel. Ver a apresentação de Beatriz Rufino e Lucas Batista na Mesa 7, que expõem seu trabalho “Aluguel social como resposta ao problema habitacional? Ilusões urbanísticas e novas estratégias de acumulação imobiliária-patrimonial”, assinalando a crescente disseminação e legitimação do aluguel social como alternativa ao problema habitacional, porém cujo discurso esconde o interesse significativo pela consolidação de um novo negócio imobiliário. Mais ainda, há uma busca de mudar o modelo de entrega de patrimônio por um modelo de aluguel social, porém a partir de formas mais sofisticadas que envolvem agentes financeiros.
Também na Mesa 7, João de Araújo Chiavone e Paula Freire Santoro, com seu trabalho “Modelos em construção: negócios de impacto, “capital paciente” e locação habitacional em São Paulo”, fazem uma reflexão sobre a proximidade da política de habitação com o mercado de capitais. Embora não seja novo o vínculo entre a habitação e a financeirização, o que parece novo é a utilização deste modelo para a produção de soluções habitacionais chamadas de “Impacto Social”.
Para finalizar, podemos assinalar que se trata de uma agenda de investigação aberta e necessária para colocar atenção sobre seu desenvolvimento na América Latina, em especial sobre os impactos vinculados à violência financeira no acesso à moradia, dado que as investigações a respeito sugerem um aumento dos custos de aluguel, diminuição da segurança de posse para os arrendatários e, em consequência, aumento dos despejos, especialmente para os arrendatários não brancos, jovens e mais vulneráveis em geral.
* Adriana é doutoranda (FAUUSP) e pesquisadora do LabCidade, patrocinada por COES – Chile ANID-PFCHA/Becas Chile Doctorado en el Extranjero/2019-folio 72200320. Raquel é profesora de FAU-USP e coordenadora do LabCidade.
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