Por Luiza Lins Veloso*, Marina Costa Craveiro Peixoto**, Rafael de Paula Eduardo Faber***

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Foto: @ca__torres/Instagram

Há sete anos, cerca 80 famílias ocupam para fins de moradia um imóvel situado na Avenida São João, nº 588, Centro da cidade de São Paulo. Antes da ocupação, o imóvel estava vazio e abandonado havia aproximadamente 30 anos sem que lhe fosse dado qualquer uso pelos proprietários, que tampouco estavam sendo notificados por parte do município pelo não cumprimento da função social da propriedade, como reza a Constituição.

Desde agosto de 2012, quando procurado pelas famílias para fazer a defesa na ação de reintegração de posse ajuizada pelos proprietários, o Núcleo Especializado de Habitação e Urbanismo da Defensoria Pública do Estado de São Paulo acompanha a luta por moradia de cerca de seus 300 ocupantes, dentre eles idosos, pessoas com deficiência e crianças.

Decorridos cinco anos sem que fosse apresentada uma alternativa habitacional pelo Poder Público, foi determinado pelo Poder Judiciário o cumprimento da ordem de reintegração de posse do imóvel. Há que se observar que o Município foi condenado a prestar atendimento habitacional às famílias em decorrência de atuação do Ministério Público. No entanto, até o momento os moradores da Avenida São João, n° 588 não foram atendidos. Assim, a operação está agendada pela Polícia Militar para o dia 1º de abril de 2017 desacompanhada, no entanto, da apresentação do adequado planejamento da execução da medida extrema.

Destaca-se que, apesar dos questionamentos apresentados por moradores e Defensoria Pública, a remoção forçada está designada para um sábado, dia em que os serviços públicos de apoio como assistência social e conselho tutelar não funcionam.  Também foi desconsiderada a argumentação de que a data designada causará prejuízo às crianças e adolescentes, uma vez que terão o período escolar interrompido e rompidos os vínculos com instituições de ensino. De igual modo, desprezada a ruptura dos vínculos estabelecidos por idosos, pessoas com deficiência e grávidas com os órgãos locais de saúde.

Fato é que as famílias da Ocupação São João, 588 estabeleceram todas suas relações sociais naquele local e lá construíram seus domicílios, que estão guarnecidos com seus bens pessoais e histórias de uma vida.

A toda evidência, a execução da ordem de reintegração de posse sem a apresentação de um planejamento concreto e a garantia de reassentamento das pessoas que compõem a Ocupação São João tem altíssima probabilidade de causar lesão a diversos direitos humanos daqueles cidadãos, dentre os quais direito à vida, à integridade física, à propriedade de seus bens pessoais e outros direitos sociais, dentre eles o próprio direito à moradia.

Não se pode deixar de considerar que, em casos de remoção forçada de pessoas, o Brasil coleciona uma série de situações envolvendo violação sistemática de direitos humanos como são exemplos o massacre do Pinheirinho, em São José dos Campos (2012); o Parque Oeste Industrial, em Goiânia (2005); e a violenta reintegração no Hotel Aquarius, situado na Avenida São João, em São Paulo (2014).

É patente que o cumprimento de ordens de reintegração de posse no Brasil revela um modus operandi em que o desrespeito aos direitos humanos das pessoas removidas se torna o ponto central das operações.

Mas o último exemplo citado, a desocupação forçada que ocorreu em setembro de 2014 no Hotel Aquarius, guarda muitas semelhanças com a nova reintegração agendada, o que gera preocupação. Trata-se da mesma área – região central da maior e mais rica cidade do país, que coleciona vazios urbanos e aguarda o melhor momento para os investimentos dos proprietários -, dos mesmos atores envolvidos (batalhão da Polícia Militar, movimento social de moradia) e da mesma supervalorização de uma propriedade que não cumpria sua função social antes de ser ocupada.

Novamente, os ocupantes da Avenida São João vêm sendo tratados como “não-cidadãos”, já que há clara intenção de atores públicos e privados de expulsá-los, a qualquer custo, do centro da cidade de São Paulo.

Passados quase três anos do desastroso cumprimento da ordem de reintegração de posse no Hotel Aquarius, nenhuma alteração foi observada no procedimento seguido pelo batalhão da Polícia Militar e tampouco na política habitacional brasileira.

Observa-se que a execução da ordem de remoção sem o mínimo planejamento necessário terá como finalidade última e única privilegiar o direito dos proprietários do imóvel e a vontade do ente municipal de retirar de área estratégica do Município centenas de pessoas, sem garantir-lhes o prévio e devido atendimento habitacional.

Não se pode permitir que o cumprimento de uma decisão judicial, sem o adequado planejamento, ocorra do dia para noite com o único intuito de executar a pretensa “higienização” do território urbano, mediante a expulsão de seus moradores, sem respeito a seus direitos humanos básicos e sem prévia garantia de seu atendimento habitacional, também determinado pelo Poder Judiciário, assim como a ordem de reintegração de posse.

Se nada for feito, é possível que se repita o caos vivenciado em setembro de 2014, reproduzindo-se a nefasta lógica de sérias violações de direitos humanos no cumprimento de ordens judiciais de reintegração de posse.

Atualização 29/03/2017http://bit.ly/2nAP7rk

*Luiza Lins Veloso é Defensora Pública do Estado de São Paulo e Coordenadora do Núcleo Especializado de Habitação e Urbanismo.

**Marina Costa Craveiro Peixoto é Defensora Pública do Estado de São Paulo e Coordenadora Auxiliar do Núcleo Especializado de Habitação e Urbanismo

** Rafael de Paula Eduardo Faber é Defensor Público do Estado de São Paulo e Coordenador Auxiliar do Núcleo Especializado de Habitação e Urbanismo