Este texto faz parte de uma série de publicações em nosso site com os artigos da equipe do LabCidade e parceiros no congresso Fórum SP 21: Plano Diretor e Política Urbana de São Paulo, realizado de maneira virtual entre os dias 21 e 30 de setembro de 2021. Os textos enviados ao evento foram alterados para estar aqui em uma versão mais enxuta.
Por Amanda Silber Bleich, Paula Freire Santoro e Débora Ungaretti *
O tema das terras públicas nunca saiu de pauta no município de São Paulo, mas nas duas últimas décadas parece estar em curso uma disputa crescente sobre o destino e a possibilidade de gestão destes recursos públicos. O conflito aparece nas contraditórias formas de planejamento e disponibilização destas terras – ora voltado para a destinação social, ora como parte de processos de desestatização ou privatização, através da utilização de diferentes instrumentos, como parcerias público-privadas municipais (ou fundos de investimento imobiliário, na esfera estadual) e projetos de intervenção urbana, entre outros.
Nos anos 2000, uma série de denúncias sobre irregularidades na destinação das terras públicas embasadas na hipótese que não estavam cumprindo sua destinação social motivaram a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Câmara dos Vereadores de São Paulo, cujos resultados apontaram situações de uso de terras públicas para exploração econômica privada (Moreira, 2017). De um total de aproximadamente 140 áreas pesquisadas, a CPI encontrou algumas áreas cedidas através de contratos de concessão para clubes, associações, bancos, institutos, concessionárias, supermercados, motéis, shoppings, postos de gasolina, etc. (CPI Áreas Públicas, 2001). Apontou, como problemas nas concessões, a falta de proporcionalidade da contrapartida, em geral pequena e nem sempre cumprida, e muitas vezes acompanhada de estímulos públicos, como isenções de IPTU e melhorias executadas pelo poder público. A CPI jogou luz sobre a dimensão municipal de um padrão histórico de apropriação de terras públicas brasileiras. No entanto, é difícil dizer que houve mudanças estruturais no uso das terras públicas municipais.
Partindo do diagnóstico da CPI, o Plano Diretor Estratégico (PDE) de 2002 determinava a realização de um cadastramento e mapeamento das áreas e edifícios públicos, bem como a implantação de um sistema único informatizado de cadastro georreferenciado (art. 85, Lei n. 13.430/02), que envolvia a elaboração de um Plano Diretor de Gestão das Áreas Públicas (art. 82, II) que deveria estabelecer as necessidades de aquisição de novas áreas públicas para equipamentos que considerasse características, dimensões e localização.
Nos governos Serra-Kassab (2004-2006) e Gilberto Kassab (2006-2008 e 2008-2012) o tema da gestão destas áreas foi palco de questionamentos e de algumas ações. Inicialmente, foi criada a Comissão Municipal do Patrimônio Imobiliário (CMPT) em 2005 (Decreto n. 45.952/05), a qual competiria a elaboração do Plano Diretor de Gestão de Áreas Públicas. As atas públicas de reuniões mostram que o tema do Plano Diretor foi tratado por esta Comissão e gerou uma minuta de Projeto de Emenda da Lei Orgânica que dizia respeito à alienação de imóveis municipais – que acabou por não adquirir o formato de um plano de gestão, enquanto que, em paralelo, seguiram ocorrendo concessões e alienações de áreas públicas de diversas ordens.
Partindo do mesmo diagnóstico da década anterior, o PDE de 2014 desenhou a primeira tentativa de formulação de um plano articulado voltado a resolver o nó das terras públicas na gestão municipal: o Plano de Gestão de Áreas Públicas (PGAP) (Bleich, 2020). O Plano Diretor, por meio do PGAP, visava a utilização social das terras públicas, propondo a organização, digitalização, georreferenciamento e publicização do acervo de áreas municipais. Entretanto, a efetiva implementação das previsões do Plano Diretor enfrentou uma série de gargalos, passando pela desorganização do acervo, a falta de diálogo intersecretarial, a resistência do corpo técnico até a descontinuidade da gestão (Idem, 2020). Este último fator resultou na divulgação de uma camada incompleta no Geosampa, com apenas 3.057 áreas públicas cadastradas.
Ao mesmo tempo em que o PDE de 2014 previu destinações sociais às terras públicas, sua elaboração foi atravessada por uma reforma no pensamento do planejamento urbano, que opta por um planejamento estratégico via projetos urbanos localizados e concretos em detrimento de uma regulação geral do território. Os desdobramentos desse modus operandi vão desde políticas de austeridade fiscal e agenda de privatizações à entrada do capital financeiro privado na produção imobiliária e de infraestrutura pública. Sendo assim, é possível identificar contradições no planejamento municipal, que prevê a destinação social das terras públicas ao mesmo tempo que promove mecanismos para a sua privatização ou desestatização.
Na esfera estadual já vinha sendo observada uma crescente regulação das terras públicas para que estivessem disponíveis, podendo ser alienadas ou concedidas a entes privados sem grandes entraves, disponibilizadas aos mercados, às lógicas de apropriação de renda, sem garantia do cumprimento do interesse público na sua utilização (Santoro et al, 2018). O Estado também articulou diversos instrumentos facilitadores da disponibilização das áreas públicas, a exemplo dos Fundos de Investimento Imobiliários (FII) e as Parcerias Público-Privadas (PPP). Na gestão municipal, o Plano Municipal de Desestatização, elaborado na gestão Dória (2019-hoje), articularia a concessão e a privatização de uma série de áreas, equipamentos e serviços públicos, usando como justificativa a arrecadação financeira e a eficiência da gestão pública.
Os dados mapeados representam 4 mil áreas dentro de um universo muito maior, com cerca de 12 mil imóveis do município que podem ser postos a venda caso seja aprovado o Projeto de Lei 404 de 2017.
Este trabalho pretende, a partir de uma investigação em curso, pesquisar a relação entre o planejamento urbano municipal e a gestão das terras públicas, procurando compreender se e como as terras públicas são mobilizadas e para quais transformações urbanas. Tem-se como hipótese que, na esfera municipal, as terras públicas serão mobilizadas, dentre outras formas, a partir dos Projetos de Intervenção Urbana (PIUs) em debate, em projetos estratégicos onde os imóveis públicos são alavancas para um processo de reestruturação urbana que envolve diferentes formas de privatização / estatização em curso.
O trabalho procurará identificar e apresentar as formas através das quais a Prefeitura mobiliza as terras públicas: ou para aliená-las e obter recursos, em processos de “desestatização”; ou para servirem de base para a transformação urbana pelo mercado e produção de novas unidades habitacionais via PPP Habitacional Municipal, que serão vendidas, portanto privatizadas; ou para integralizá-las como ativos de empresas ou fundos públicos; e, eventualmente, como encontrado no Estado, se foram utilizadas para constituir garantias para PPPs de forma geral e em especial,a PPP Habitacional Municipal de São Paulo.
*Arquiteta pela Escola da Cidade e graduanda EACH-USP; Professora da FAU USP e coordenadora do LabCidade; doutoranda na FAU USP e pesquisadora do LabCidade.
Referências
BLEICH, A. S. Espaços públicos ociosos e as implicações práticas da gestão de áreas públicas em São Paulo. Trabalho final de graduação. São Paulo, Escola da Cidade, 2020.
CÂMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO. Relatório da CPI de Áreas Públicas. São Paulo, 2000-2001.
MOREIRA, Tomás. Áreas públicas: fontes de destinação social ou privada. Referências às novas políticas habitacionais brasileiras. Oculum Ensaios, n. 7_8, p. 136-145, 2008.
SANTORO, P. F., UNGARETTI, Débora, MENDONÇA, Pedro. O papel das terras públicas na mobilização do estado pelo capital em São Paulo. In: Cidade Estado Capital: reestruturação urbana e resistências em Belo Horizonte, Fortaleza e São Paulo. 2018.
SANTORO, P. F., UNGARETTI. Os Fundos de Investimento Imobiliário Públicos: submissão da terra pública às lógicas imobiliário-financeiras? In: Propriedades em Transformação 2: Expandindo a agenda de pesquisa. São Paulo, 2021.
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