Por Simone Gatti **
Já falamos bastante aqui no blog sobre a importância e os conflitos do programa Locação Social, bem como sobre a urgência em ampliá-lo como política alternativa ao modelo da propriedade privada, sobretudo para atender as famílias mais pobres.
A oferta de moradia por aluguel, até então bastante negligenciada pelas políticas públicas municipais, atualmente encontra-se em amplo debate, porém com novas possibilidades de modelagem e novos atores. A Prefeitura Municipal de São Paulo apresentou recentemente uma proposta de Parceria Público-Privada (PPP) para a viabilização da locação social. Em paralelo, a PPP de Habitação do Centro, empreendida pela Agência Casa Paulista, do Governo do Estado, estuda em parceria com a prefeitura a inserção do aluguel social na segunda fase do programa. O SECOVI – Sindicato das Empresas de Compra, Venda, Locação e Administração de Imóveis de São Paulo, também apresentou recentemente sua versão da locação social.
Em todos os casos, há uma novidade em relação ao modelo em vigor, que é a introdução do mercado privado para atuar na reforma dos edifícios, na gestão condominial ou no desenvolvimento do programa como um todo. No mês passado, um evento na Prefeitura de São Paulo organizado pela Secretaria Municipal de Habitação apresentou duas destas propostas: aos modelos de PPP para Locação Social e o modelo elaborado pelo SECOVI.
A PPP da Locação Social
Na proposta da PPP de Locação Social apresentada pela Prefeitura, prédios públicos e edifícios adquiridos do INSS entrarão para o programa de locação e serão reformados pelo empreendedor privado, que terá ainda a tarefa de realizar a manutenção do edifício enquanto durar a concessão (prevista para 20 anos), através de uma concessão administrativa. Neste acordo, o empreendedor tem o imóvel como garantia e ainda a certeza do pagamento dos aluguéis e seus reajustes, a preços pré-definidos, através do acesso da carteira de recebíveis da COHAB, que é a receita oriunda da venda das unidades habitacionais. Ou seja, se o inquilino não pagar o aluguel, o empreendedor não arca com a inadimplência, que será ressarcida com recursos municipais.
Segundo a prefeitura, nesse modelo, a política de locação continua sendo de responsabilidade pública, ficando apenas a construção e a gestão condominial sob a responsabilidade do privado, e não a gestão operacional do programa. A justificativa pela escolha da PPP na locação social é a agilidade que o modelo permite, sobretudo para a realização das reformas e a elaboração de um contrato qualitativo de serviços, com o acompanhamento de indicadores de desempenho de qualidade e a possibilidade de uma especialização maior na oferta dos serviços, já que a própria COHAB tem encontrado dificuldades para gerir o parque público de locação existente.
No debate de apresentação do programa, muito se falou sobre as garantias ao investidor privado, mas pouco sobre as garantias ao gestor público e ao morador. Apesar da modelagem ainda estar em processo de consolidação na atual gestão, a publicação do edital está prevista para o segundo semestre de 2017, o que pode comprometer os objetivos originais do projeto, sobretudo no que se refere à destinação da demanda para as famílias de baixíssima renda e, ainda, da real destinação de edifícios para a locação social. Conforme notícias recentes veiculadas pela imprensa, a futura equipe técnica do prefeito eleito, João Dória Jr., pretende promover mudanças substanciais na política pública desenvolvida pela atual gestão, a fim de atender os interesses do mercado imobiliário, o que pode comprometer o planejamento atual.
Outras questões secundárias, e não menos importantes, ficaram à margem do debate, como os subsídios das taxas condominiais e de serviço para as famílias mais pobres, os problemas de gestão financeira e condominiais existentes nos atuais edifícios públicos destinados à locação social e a necessária formatação dos programas de geração de emprego e renda para atuarem concomitantemente ao processo de locação.
LAR – Locação Acessível Residencial
No mesmo evento promovido pela prefeitura, foi apresentado o programa de locação social proposto pelo SECOVI, o LAR – Locação Acessível Residencial. No programa, o incorporador destina parte do seu terreno para construir o empreendimento para a locação, com aluguéis pré-definidos pela prefeitura, e recupera o investimento 10 anos depois, quando as unidades poderão ser vendidas para o mercado.
A proposta apresenta a premissa de atingir o valor de aluguel mais próximo possível aos valores de aluguéis em ‘favelas’, utilizando nenhum ou menos subsídios públicos possíveis. A princípio, uma proposta interessante, mas que se depara com uma série de questões a serem equacionadas, sobretudo quando coloca, dentro das suas premissas, que: (i) locatários não precisam comprovar renda para alugar o imóvel, mas se estiverem inadimplentes, podem ser despejados rapidamente; (ii) o imóvel será vendido 10 anos depois; e (iii) o programa necessita da flexibilização dos parâmetros urbanísticos nos terrenos destinados ao LAR.
Primeiramente, trata-se de um programa privado, mas que precisa de incentivos legais e financeiros do poder público para ser viabilizado, como o aumento do coeficiente de aproveitamento da parte do terreno destinado ao LAR para aumentar a produtividade do empreendimento e viabilizar o sistema de locação, negociações para alcançar juros menores que 5% ao ano para o financiamento provenientes do FGTS ou BID e juros zero durante o período de obras. Se esses incentivos são dados pelo poder público, caberia uma negociação em relação a demanda, a ser indicada pela prefeitura. Ou, tratando-se de livre mercado, quais benefícios reais para a política habitacional o programa oferece em relação à supressão do déficit habitacional?
Os valores dos aluguéis apresentados na modelagem não são correspondentes aos que pagam as famílias que hoje vivem nos edifícios de locação social, mas são compatíveis com aluguéis em cortiços no centro da cidade ou em favelas bem localizadas (Valores indicados pelo programa: R$ 600 para unidades de 33,666 m² e um dormitórios destinados a famílias com 2,27 salários mínimos; e R$ 780,00 para unidades de 43,76 m² e dois dormitórios, destinados para famílias com 2,95 salários mínimos). Contudo, a população que paga esse valor hoje e vive em cortiços e favelas frequentemente não tem como comprovar renda, pois depende do trabalho informal e encontra-se, muitas vezes, em situação de ilegalidade, como os imigrantes. Como ela poderá ter acesso ao imóvel? O programa não determina nenhuma condicionante de comprovação de renda, mas coloca a adimplência como requisito para a permanência no imóvel, o que aponta um conflito de questões.
Como garantir valores de condomínios e taxas de serviços compatíveis com a capacidade de pagamento dos moradores? Quem paga R$ 600 por um cortiço ou unidade em favela não tem esses gastos computados mensalmente.
O despejo ‘imediato’ de inadimplentes é uma questão problemática para o locatário e para o empreendedor e contraria as determinações da Lei do Inquilinato. Há a necessidade de vinculação da proposta a um programa de geração de emprego e renda ou parceria com o poder público para recebimento do aluguel social ou outra forma de subsídio público, no caso de inadimplência? Ou a proposta se assume como um programa para uma faixa específica da população, que tem como comprovar renda e possui renda mínima pré-determinada?
A venda das unidades após 10 anos coloca os moradores em situação de vulnerabilidade, à medida que terão que encontrar outra moradia quando findar o prazo de locação, contribuindo para o déficit habitacional municipal. Seria interessante funcionar como o PAR – Programa de Arrendamento Residencial, onde o morador que permanece no imóvel tem preferência em adquiri-lo, descontando o valor pago dos aluguéis do montante final.
Sobre a flexibilidade em relação aos parâmetros urbanísticos é importante lembrar que o gabarito se define pela zona de uso, não há como sair da regra do permitido pelo zoneamento. A proposta sugere a liberação de um coeficiente de aproveitamento de 6,5 vezes a área do terreno para os empreendimentos LAR, o que geraria incompatibilidade com o zoneamento, só podendo ser alterado por lei. Já as áreas permeáveis e vagas também estão reguladas pela zona de uso e são condições essenciais estabelecidas pelo Plano Diretor, que também não podem ser flexibilizadas.
Mediando conflitos
São muitas variáveis inerentes à complexidade das soluções habitacionais para as famílias de baixa renda, que podem vir a ser equacionadas, desde que o interesse público esteja sendo contemplado. As mudanças necessárias afetariam substancialmente as receitas previstas ao empreendedor privado, colocando a modelagem em questionamento do ponto de vista do lucro e da eficiência? Quanto ganha e quanto perde o Estado com os incentivos fornecidos ao privado em detrimento de políticas essencialmente públicas? São contas necessárias, que precisam ser feitas.
Por outro lado, percebemos que os entraves para a concretização de políticas não estão somente em equacionar interesses entre público e privado, mas também de consolidar políticas pactuadas socialmente no processo de mudanças de gestão. Se a retomada do debate sobre a locação social é comemorada, que ela aconteça fiel aos seus princípios e objetivos.
*Simone Gatti é arquiteta e urbanista e pós- doutoranda na FAU USP. Contribuiu com o Movimento pelo Direito à Cidade no Plano Diretor durante seu processo de revisão.
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