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Virada Cultural 2014. Crédito: @Artur_Luiz/Flickr

Anunciada pelo prefeito eleito de São Paulo, João Doria Jr., a mudança da Virada Cultural de São Paulo para o Autódromo de Interlagos, na zona sul, tem motivado críticas contundentes.

Reproduzimos aqui dois textos que avaliam a proposta e suas implicações:

Um deles é um manifesto de movimentos e coletivos que atuam nas periferias. Mais de 50 entidades assinam a nota, que circula no Facebook.

O outro texto é do urbanista, vereador e ex-secretário da Cultura Nabil Bonduki e foi publicado originalmente na Folha de S. Paulo, na última quarta-feira (7)


As periferias de São Paulo, articuladas por meio de movimentos e coletivos, reivindicam há anos a descentralização de recursos públicos, já que a maior parte deles está concentrada, historicamente, em poucos bairros da cidade. Esses investimentos são fruto do trabalho de todos, especialmente dos mais pobres que, proporcionalmente, pagam mais impostos do que ricaços daqui e de todo o país.

Com a Virada Cultural não é diferente. Concentrar em uma única região e em um único dia tantas atividades, escolhidas muitas vezes sem a atenção à diversidade de gêneros e expressões, sempre foi alvo de nossas críticas. A descentralização do evento e pulverização do investimento ao longo do ano, respeitando os fazeres culturais de artistas que vivem e bebem das margens, é o óbvio. É uma reivindicação de vários movimentos e coletivos desde sempre, e a futura gestão encabeçada por João Doria Jr. não escapará da cobrança e da luta pela descentralização do orçamento para as áreas de alta vulnerabilidade social.

Levar o evento para o Autódromo de Interlagos, no extremo sul, um dos raros equipamentos públicos localizados fora da região central da cidade, já nos soa como uma tentativa de cercar o evento, criando barreiras para que ele não seja frequentado por quem não é bem-vindo nos “rolês de gente diferenciada”, já que o espaço é murado, com portões que historicamente impedem que vizinhos do lugar o acessem, podendo apenas ouvir os roncos dos motores. Mas o simples deslocamento do evento para um lugar perto da casa de muitos de nós periféricos pareceu, para eles, a sua sentença de morte.

Mas o maior descalabro partiu do futuro (não, se depender de nós) secretário de Comunicação. Antes mesmo de assumir a pasta, Fábio Santos já criminaliza os moradores das “perifas”, atribuindo a nós arrastões e outros crimes. Além disso, nos responsabiliza por levar a Virada Cultural para o Autódromo, longe da cidade dos descendentes de escravocratas barões de café.

É inadmissível que um secretário municipal, cujo salário sai dos impostos que pagamos a cada quilo de feijão, a cada chiclete comprado no shopping trem, a cada R$ 3,80 de busão, nos criminalize e veja nossos bairros como depósitos daquilo que não se quer mais, e não como cidadãos.

Cabe a um secretário de Comunicação pautar estratégias que impeçam a discriminação, o racismo – mesmo o institucional sofrido diariamente em espaços públicos como escolas e hospitais -, a segregação espacial e a desvalorização simbólica dos nossos fazeres.

A cidade escolheu mal João Doria, que se mostrou péssimo administrador de pessoal ao escolher seu secretariado. Mas isso não foi por acaso. O próprio prefeito eleito classificou os pancadões como “cancro que destrói a sociedade”. Os bailes funk são manifestações da juventude periférica, que espontaneamente ocupa espaços públicos em quebradas com pouco ou nenhum investimento do Estado em cultura – e o pouco que há, como as casas de cultura, podem ser terceirizadas e assumidas por organizações privadas.

O que ocorre nos pancadões é o mesmo que ocorre no entorno das universidades frequentadas pela burguesia de São Paulo. Mas lá, a polícia faz vista grossa para o tráfico e protege os jovens, como deveria ser sempre, independente do lugar. Nos nossos bairros, ela protagoniza os genocídios o da juventude negra, indígena, periférica, pobre.

Falas como a de Doria e de seu escolhido para a Comunicação incentivam a ação violenta das polícias e o extermínio simbólico promovido pela mídia. Por décadas e décadas, nossos bairros foram roubados e nós fomos levados a ser mão de obra barata a ser explorada na “cidade”, construindo parques que não podíamos entrar, morrendo em obras de metrô longe de nossas casas. Apesar de tudo, estamos aqui, vivões, escrevendo nossa história, e não toleraremos a intolerância, a ignorância e a covardia.

Não nos interessa a concentração de recursos em um só lugar da cidade, como sempre foi a Virada Cultural. Mas não aceitaremos ser criminalizados, especialmente para justificar mudanças que, no fundo, representarão mais catracas, portas giratórias a selecionar quem participa ou não do evento.

Esse futuro secretário Fábio Santos, já é ex. Não nos representa, não nos merece.

Assinam até agora:
Academia Periférica de Letras
AEUSP – Associação de Educadores da USP
Alma Preta
AMO – Associação Mulheres de Odun
Associação Franciscana de Defesa de Direitos e Formação Popular
Blog NegroBelchior
Brechoteca – Biblioteca Popular
CAP – Coletivos Culturais de Cidade Ademar e Pedreira
Casa no Meio do Mundo
Catorze de Maio
Caxueras – Espaço Cultural Cohab Raposo Tavares
Cine da Quebrada
Coletiva Trajetórias Feministas de Teatro das Oprimidas
Coletivo ArteFato e
Coletivo Brincantes Urbanos
Coletivo Perifatividade
Coletivo Salve Kebrada
Comitê SP da Campanha Nacional pelo Direito à Educação
Comunidade Cultural Quilombaque assina
Comunidade Portelinha & Viela 18 – Família Unida, Esmaga Boicote!
Desenrola E Não Me Enrola
Era uma vez.
Espaço Comunidade
Espaço de Formação Assessoria e Documentação
Favela do Moinho Resiste
Felizs-Feira Literária da Zona Sul
Filosofia de Rua
Forro da Quebrada
Gelatéca
Igor Gasparini, T.F.Style Cia de Dança
Imargem
Instituto Haphirma de Comunicação, Cultura, Cidadania e Educação Social
Mães de Maio
MH2O Hip-Hop Organizado
MOSH A Posse
Movimento Ocuparte
Movimento Oeste Hip Hop Educação
Mulekot’s Moinho
Periferia em Movimento
Pó de Chá Filmes
Praçarau
Projeto Comunidade Samba do Monte
Projeto Hip-Hop no Monte
Projeto Moinho Vivo
Quebrada de Coco
Quilombação
Rede Cultural Oeste
Reviravoltas Máfia
Role_De_Bike
Sarau do Binho
Sarau do Pira com Zé Sarmento e Marcio Rodrigues
Só com vinil
Sonia Bischain, Coletivo Cultural Poesia na Brasa
Uneafro-Brasil
Verso em Versos

Proposta vai matar a Virada

Por Nabil Bonduki

Com a proposta esdrúxula de transferir as principais atrações da Virada Cultural para o autódromo de Interlagos, o prefeito eleito de São Paulo, João Doria (PSDB), ameaça exterminar um dos festivais culturais mais criativos e importantes do mundo, transformando-o em um evento convencional, facilmente mercantilizado.

O que diferencia a Virada é a interação com o espaço público, em especial no centro, região repleta de praças, largos, viadutos, avenidas e edifícios de interesse histórico e cultural. Circular livremente entre esses espaços, participando das mais diversas manifestações e linguagens artísticas, é o grande diferencial desse evento.

A Virada foi importante para promover o “reencantamento” dos paulistanos com a cidade e a ocupação cultural do espaço público, que cresceu enormemente na gestão do prefeito Fernando Haddad (PT).

Ademais, o centro é o lugar melhor conectado por transporte público, permitindo interação de todas as classes sociais, de todas as zonas da cidade.

Já se criticou muito a Virada sob a alegação de que concentraria em um único evento, em apenas 24 horas, em uma só região um orçamento gigantesco que absorveria parte significativa dos recursos para contratação artística da prefeitura. Desde 2013, entretanto, isso já vem mudando, de maneira muito efetiva.

Como ex-secretário de Cultura na gestão Haddad, enfrentei esse problema sem descaracterizar a Virada. Ela passou a integrar um calendário anual de eventos em espaços públicos, ao lado de outras manifestações realizadas em todas as regiões na cidade, como o Aniversário de São Paulo, o Carnaval de Rua, o Mês do Hip-Hop, o Mês da Cultura Independente, as Viradinhas Culturais e a Jornada do Patrimônio.

Ao mesmo tempo, foi criado o Circuito Municipal de Cultura, que utiliza dezenas de equipamentos culturais do município -teatros, casas de cultura, CEUs, bibliotecas e centros culturais- para a realização de espetáculos durante todo o ano, em todas as linguagens artísticas, além de debates e palestras.

Assim, a Secretaria Municipal de Cultura cumpriu a meta de estar em todas as regiões da cidade o ano inteiro, mantendo e renovando a Virada nos últimos 12 anos.

Com essa diretriz, a Virada passou nos dois últimos anos por modificações relevantes que buscaram ampliar seu potencial e superar problemas de violência.

Para garantir mais segurança, o perímetro do evento foi reduzido, evitando-se a criação de trechos desocupados e escuros onde ocorriam arrastões. A área foi iluminada por “led” e os percursos entre os palcos foram ocupados por barracas de alimentação e artesanato.

Durante a madrugada, os palcos ficaram ainda mais concentrados, aumentando a sensação de segurança. A violência caiu significativamente, tornando-se residual. Em 2016, foram registrados apenas quatro furtos e nenhuma ocorrência policial grave.

Por outro lado, neste ano o período do evento foi ampliado para dois dias, iniciando-se na sexta-feira à noite, o que permitiu ao trabalhador do centro participar após o fim do expediente, sem a necessidade de se deslocar no final de semana.

Do ponto de vista da cidadania cultural, abriu-se espaço para artistas menos consagrados e manifestações de cultura popular, negra, indígena e periférica.

Em 2015, o Vale do Anhangabaú tornou-se polo dessas manifestações culturais, que ganham cada vez mais peso na cidade. Mas se a cultura periférica veio ao centro, não descuidamos da descentralização da Virada, que ocorreu em todas as 32 subprefeituras, com inúmeros eventos em palcos, equipamentos culturais e ruas abertas.

Com essa Virada na Virada, como escrevi em artigo publicado nesta Folha em maio, superamos antigas críticas e problemas, aperfeiçoando o evento, que passou a gastar uma porcentagem muito menor do orçamento da cultura.

Matar a Virada, transformando-a em uma espécie de rave em Interlagos, é mais um erro anunciado pelo prefeito Doria. Esperamos que mude de ideia, como, aliás, vem fazendo em vários temas de interesse da cidade.

NABIL BONDUKI, arquiteto e urbanista, é vereador (PT) em São Paulo e professor titular de planejamento urbano na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Foi secretário municipal de Cultura (gestão Haddad)