Por Vitor Inglez, Renato Abramowicz Santos, Matheus Martins e Benedito Barbosa
Cerca de cem famílias moradoras de duas ocupações da região central de São Paulo estão com suas remoções agendadas para os meses de novembro e dezembro deste ano, em decorrência de processos que mobilizam estrategicamente a categoria “risco”.
Vinte e sete famílias moradoras da rua Santa Rosa, 283, localizada na zona cerealista, estão ameaçadas de remoção, em dezembro, sem qualquer alternativa habitacional. Cerca de setenta famílias moradoras da rua da Glória, 875, que lá residem há mais de 10 anos, já estão com o despejo marcado para o dia 22 de novembro.
Iniciada em 2018, nos andares superiores de um prédio historicamente abandonado da zona cerealista, a ocupação Santa Rosa foi formada por trabalhadoras e trabalhadores ambulantes ligados ao intenso comércio popular da região, principalmente de frutas e verduras. Imediatamente, tornou-se alvo de um processo judicial de reintegração de posse, no qual direitos à ampla defesa das famílias moradoras foram violados pela primeira e segunda instâncias do poder judiciário paulista. Estas violações foram reconhecidas pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) que, em 2022, anulou integralmente o processo, fazendo-o retornar ao seu estágio inicial.
Inconformados, os proprietários do imóvel então lançaram mão de um expediente que tem sido recorrentemente utilizado para acelerar e efetivar processos de remoção e que relativiza e contorna direitos e garantias processuais: a mobilização da categoria “risco” do imóvel, alegando inadequação de suas condições de segurança predial. A instrumentalização dessa justificativa, ignorando melhorias já feitas pelas famílias moradoras e as possibilidades de resolução dos problemas ainda existentes, culminou em mais uma ordem de remoção pelo poder judiciário e na interdição da ocupação por parte da Subprefeitura da Mooca.
Por sua vez, a Ocupação Liberdade, na rua da Glória, 875, estabelecida há mais de 10 anos, passou a ser ameaçada de remoção pela própria Prefeitura de São Paulo, sob alegação de que o prédio se encontra em risco, baseada em um auto de interdição da Subprefeitura da Sé. A defesa das famílias foi desconsiderada, mesmo com a apresentação de um relatório de segurança da edificação, produzido pela FIO – Assessoria Técnica Popular –, constatando a inexistência de risco de colapso estrutural e apontando alternativas de melhoria do edifício por meio de metodologias para mitigar riscos em edifícios ocupados.
O despejo foi marcado pela Polícia Militar para o dia 22 de novembro de 2023, tendo como única garantia às famílias o expediente insuficiente e precário do pagamento de auxílio-aluguel, de R$ 400 mensais por um ano, com a possibilidade (nem sempre garantida) de renovação por mais um, o que evidentemente não assegura seu direito à moradia.
As condições de segurança predial – das instalações elétricas e hidráulicas, presença de materiais inflamáveis, patologias construtivas/estruturais – têm sido usadas estrategicamente para legitimar remoções na região central, território que é alvo de um intenso processo de reestruturação urbana e de projetos de “revitalização” (que no fundo revelam seu caráter higienista, de apagamento e não reconhecimento das formas de vida e de morar das regiões que têm como alvo), marcado pela sobreposição de diversos instrumentos de planejamento (como PIUs e PPPs) e pelo incentivo à produção imobiliária de novas unidades habitacionais e de retrofit, que têm como efeitos (e objetivos) a expulsão do centro da cidade das formas populares não proprietárias de morar, como discutimos aqui.
No acompanhamento dos casos concretos de ameaça e remoção, vemos que a mobilização da categoria “risco”, na grande maioria das vezes, revela o comprometimento com a realização do interesse privado em reintegrações de posse e em processos de valorização imobiliária, e não com a efetiva solução dos problemas supostamente apontados, cuja implementação deveria ser a prioridade absoluta para melhoria das condições de segurança e para assegurar a permanência das famílias moradoras. O expediente de remoção por “risco” desconsidera o fato de que, ao serem removidas, essas famílias que se encontram em situação de vulnerabilidade socioeconômica estarão sendo submetidas a vários outros riscos, dos quais o poder público se desresponsabiliza.
As famílias da ocupação Santa Rosa vinham justamente se organizando para realizar a melhoria das instalações elétricas e de prevenção de incêndios no prédio, despendendo economias de vida para assegurar sua permanência. Contudo, estes esforços foram desprezados pelo poder judiciário de São Paulo que manteve a remoção e determinou que seu cumprimento fosse mediado pelo Grupo de Apoio às Ordens Judiciais de Reintegração de Posse (GAORP).
Como explicamos anteriormente, o GAORP desempenha o papel que seria das Comissões Regionais de Soluções Fundiárias, criadas pelo regime de transição da ADPF nº 828 do Supremo Tribunal Federal (que suspendeu remoções durante a pandemia) e da Resolução nº 510 do Conselho Nacional de Justiça. Como seu nome declara, este órgão deveria construir soluções para os conflitos fundiários, que se avolumaram na esteira da crise habitacional agravada pelo período pandêmico. No entanto, a atuação do GAORP tem sido caracterizada pela inércia dos órgãos do poder público em construir efetivamente soluções para os conflitos, redundando, muitas vezes, em tentativas de negociação de soluções privadas entre as famílias removidas e os agentes da remoção.
Ainda no caso da ocupação Santa Rosa, não apenas os órgãos do poder público negaram-se a participar da construção de qualquer solução para o conflito fundiário, como representantes da polícia civil tentaram criminalizar as famílias moradoras, determinando a abertura de inquérito policial. O órgão do Tribunal de Justiça de São Paulo que deveria servir para a construção de soluções para os conflitos fundiários, coordenando a atuação de diversos órgãos do poder público, além da remoção, produziu ainda uma tentativa de criminalização das famílias moradoras.
Já na Ocupação Liberdade, o poder judiciário sequer acionou o GAORP, negando-se a assegurar a participação das famílias moradoras naquele espaço de mediação sob a justificativa de que a “situação de risco” do prédio configura-se como exceção à proteção conferida pela ADPF nº 828 e pela Resolução nº 510/CNJ.
O que recorrentemente tem se visto é as subprefeituras (regionais) utilizando-se do poder arbitrário de interditar indiscriminadamente prédios ocupados, recorrendo a diversas justificativas – o uso do “risco”, entre elas, é cada vez mais frequente enquanto um dispositivo que contorna e desativa garantias jurídicas mínimas –, sem seguir diretrizes que priorizam a melhoria das condições de segurança para a permanência das famílias ou assegurar minimamente a sua defesa.
Além desse recurso, remetem ainda os processos à Polícia Civil para a abertura de inquéritos policiais para o crime de desobediência, em uma evidente tentativa de criminalização dos ocupantes, que fora a ameaça de remoção passam a ter que lidar (e se defender) dos processos de acusação e investigação instaurados contra suas formas de morar e tentativas de estabelecer e construir vidas e cotidianos.
A partir desses mecanismos, para além da remoção e da criminalização de determinadas formas (populares) de morar, criminaliza-se também a resistência das famílias e seus esforços em se manter, (enquadrados criminalmente como “desobediência”) ao supostamente desobedecerem os autos de interdição permanecendo em sua única moradia, sem receber do poder público qualquer alternativa habitacional ou oferta que não seja a remoção e a construção de estigmas e responsabilizações criminais.
A ameaça de remoção das ocupações Liberdade e Santa Rosa levanta duas preocupações urgentes: a categoria “risco” sendo instrumentalizada para realizar remoções, desativando direitos e garantias das famílias moradoras, e novas tentativas de criminalização das formas populares de moradia, em um contexto em que a região central se vê marcada pelo recrudescimento da violência de Estado, atrelado a grandes projetos de reestruturação urbana, que buscam expulsar e eliminar do território as formas não proprietárias de morar.
A utilização do “risco” e criminalização costumam caminhar juntas, como componentes de uma mesma mecânica: a construção do estigma do “perigo” que, das condições físicas de um imóvel, estende-se ao território e a seus moradores. Os prédios são “perigosos”, as famílias que neles moram são “perigosas” e as respostas do poder público são, portanto, interdição, remoção e criminalização.
*Pesquisadores do Observatório de Remoções
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