Por Aluizio Marino, Débora Ungaretti e Raquel Rolnik
Há dois anos e meio, coletivos culturais ressignificaram um galpão abandonado por pelo menos 15 anos pela Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo (COHAB-SP) em Itaquera, transformando-o em um centro cultural referência para a comunidade local, artistas e coletivos da zona leste. Hoje, os coletivos correm risco de serem expulsos em decorrência de um processo de reintegração de posse. Em reunião com a COHAB, foi informado que o objetivo da companhia é vender o imóvel – assim como tantos outros que estão ocupados – mas sua destinação e uso futuros são incertos.
A reintegração de posse mencionada faz parte de uma estratégia mais ampla adotada pela COHAB: um Plano de Desmobilização de Ativos que pretende vender 900 imóveis. Com isso, longe de ser um caso pontual, outros espaços culturais e sociais também estão sob a mesma ameaça. Segundo documentos da COHAB, de abril de 2018, a previsão é de arrecadar R$ 432 milhões para novos investimentos em moradia. Entretanto, até o momento, a companhia não apresentou os detalhes desse plano, quais são esses imóveis e quais os futuros usos após sua venda. Mesmo após uma solicitação formal da lista de imóveis e terrenos alvo do plano de desmobilização, realizada via Lei de Acesso à Informação pelos pesquisadores do LabCidade, a companhia se esquivou da responsabilidade. O chefe de gabinete da COHAB respondeu que ainda não há uma lista definitiva dos imóveis, e que a divulgação só seria feita por meio do Diário Oficial da Cidade, o que ainda não aconteceu.
Contraditoriamente, no entanto, uma matéria divulgada pelo jornal Folha de São Paulo, no dia 03 de março de 2018, aponta que, dentre os 900 ativos, estão terrenos, imóveis e unidades comerciais localizadas nos diferentes conjuntos habitacionais da COHAB, muito deles hoje ocupados por órgãos públicos, organizações da sociedade civil e empresas, dando exemplos de imóveis que estariam nessa listagem.
Além da seletividade da divulgação de informações, e embora afirme que a lista final não está concluída, a COHAB já está aplicando uma política ampla de retomada de terrenos por meio de ações reintegração de posse. A desocupação e a venda dos imóveis, no entanto, estão na contramão das necessidades dos conjuntos habitacionais localizados nas bordas da cidade, onde se verifica um déficit de equipamentos e serviços sociais. A tendência é o cenário se agravar após a comercialização dessas terras e imóveis públicos. Tamanho impacto para a cidade e, principalmente, para as populações moradoras dos conjuntos ou de áreas próximas a eles, deveria estar sendo publicamente discutido.
O Coragem é uma das poucas galerias de arte existentes nas periferias de São Paulo. Já abrigou exposições de grafiteiros e coletivos de arte urbana de toda a cidade, sendo uma alternativa para os artistas exporem seus trabalhos sem custos e para um público que não está inserido nesse circuito da arte. Trata-se, portanto, de um espaço de democratização das artes visuais, aproximando a população de uma linguagem artística que permanece elitizada e restrita aos museus e galerias localizadas majoritariamente no centro expandido da cidade.
Por ter localização estratégica, no “centro” da zona leste, sendo próximo à estação da CPTM José Bonifácio, o espaço é uma referência para a articulação dos coletivos culturais da região. É no Coragem onde acontecem as reuniões e encontros abertos do Fórum de Cultura da Zona Leste (FCZL), uma organização de grande importância, que articula diversos coletivos e agentes culturais. O FCZL foi, inclusive, um dos principais atores na construção da Lei de Fomento à Cultura da Periferia, elaborada por diversos coletivos culturais e aprovada no final de 2016 após pressão popular.
No espaço também funciona uma gibiteca comunitária, a Gibiteca Balão, com atividades voltadas à cultura nerd e ao incentivo à leitura. Esse projeto é, inclusive, apoiado pela Prefeitura, por meio do programa de Valorização de Iniciativas Culturais (VAI), o que reforça a importância do Coragem como espaço cultural comunitário. Existe portanto uma contradição: a prefeitura, ao mesmo tempo que prevê reintegrar o espaço, reconhece formalmente os projetos culturais desenvolvidos na ocupação, apoiando financeiramente parte deles via editais de incentivo a cultura.
Além das ações mencionadas, a programação cultural da ocupação conta com: saraus, oficinas, shows e ações de coletivos parceiros que utilizam o espaço para ensaios, reuniões e outras atividades – tudo isso sem burocracia, ao contrário da lógica usual dos equipamentos culturais públicos e espaços privados.
A cidade como um todo perde com a possível reintegração da Ocupação Cultural Coragem. Isso porque serão muitos os impactados, dentre eles: (i) a comunidade de José Bonifácio, especificamente da COHAB 2, pois a ocupação é um dos poucos espaços culturais que ali existem; (ii) os coletivos da zona leste, devido a importância da ocupação na articulação dos agentes culturais; e (iii) os artistas visuais da cena urbana, pois o Coragem é um espaço aberto para expor seus trabalhos, sem burocracia e que não cobra nenhuma contrapartida financeira.
Importante lembrar que além da atual ameaça de remoção da Ocupação Cultural Coragem, outros espaços já foram reintegrados na região. O caso mais emblemático foi da Ocupação de Mulheres Teresa de Benguela, que em abril desse ano foi alvo de uma reintegração de posse arbitrária. Sem informações adequadas, a reintegração foi acelerada pela COHAB, que utilizou um processo de reintegração antigo, voltado a outro ocupante que utilizou anteriormente o espaço para fins comerciais. Após meses com o imóvel vazio e lacrado, a ocupação foi recentemente retomada, para voltar a ser um espaço de acolhimento para mulheres vítimas de violência doméstica.
Outros imóveis, entretanto, acabaram demolidos após a reintegração, como foi o caso de duas ocupações culturais em terrenos da COHAB: o Barracão do Coletivo Alma, que desenvolvia ações culturais e ambientais, e o Ponto de Cultura Reação, espaço voltado a oficinas culturais e eventos ligados a cultura negra, ao hip hop e a literatura marginal periférica. É possível que outros tantos espaços culturais estejam ameaçados. Como é possível ver no mapa abaixo, a COHAB detém uma grande área em imóveis na zona leste – e, teoricamente, qualquer um desses poderia entrar na lista de imóveis para privatização.
Outro fator que agrava a ameaça dessas reintegrações de posse é que parte relevante dos imóveis e terrenos alvos do Plano de Desmobilização de Ativos – em especial aqueles localizados nos conjuntos habitacionais – estão em territórios demarcados como ZEIS. O Coragem é um deles. Nessas áreas, de acordo com o Plano Diretor Estratégico, qualquer intervenção do Estado deve ser apreciada e aprovada por um conselho gestor. Nesse sentido, a destinação desses imóveis e terrenos, incluindo a desocupação e a venda, deveria, necessariamente, contar com consultas à população local. As ações da COHAB em relação à privatização do galpão em que se encontra a ocupação, portanto, contrariam as regras do Plano Diretor Estratégico relativas às ZEIS.
Em vez do fortalecimento de coletivos culturais e de iniciativas locais de defesa das mulheres vítimas de violência, a COHAB pretende desocupar e vender esses equipamentos culturais e sociais, que terão destinação hoje desconhecida, com falta de transparência, desrespeito da legislação urbana e ausência de participação popular.
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