Isadora de Andrade Guerreiro e Aluízio Marino*
No último dia 21 de fevereiro um vídeo divulgado em diversas reportagens reacendeu a antiga polêmica sobre o chamado “Shopping Trem” (comércio ambulante realizado dentro do sistema da CPTM): cinco seguranças da companhia são violentamente agredidos por “Marreteiros” (como se autodenominam os ambulantes) no meio dos trilhos do trem na Estação Santa Terezinha (Carapicuíba), na Linha 8-Diamante (Júlio Prestes – Amador Bueno). A ação, segundo áudios divulgados, foi planejada e aparece como reação ao aumento das operações de repressão e apreensão do comércio informal feitas pela CPTM desde o começo do ano.
Em seguida, chegaram ao LabCidade denúncias, acompanhadas de vídeos (ao final da postagem), de diversas destas situações de repressão aos marreteiros realizadas pelos seguranças da CPTM – igualmente violentas. Filmados por pessoas nas plataformas e vagões, os vídeos foram feitos como forma de proteção aos vendedores. Alguns deles terminam com o fechamento das portas de lugares privativos da companhia para onde eles são levados e não se sabe o que acontece (ainda que a forma como estejam sendo conduzidos indique a brutalidade da ação).
Para além da normalidade do Shopping Trem – que é parte da precariedade estrutural das relações de trabalho no nosso desenvolvimento – dados indicam que o fenômeno aumentou explosivamente desde o início da recessão econômica, o crescimento do desemprego (12 milhões de desempregados no final de 2018 segundo o IBGE) e aumento da informalidade, que desde 2017 superou o número de postos com carteira assinada, movimento que, ainda segundo dados do IBGE, se intensificou no último ano. No Metrô, de 2015 para 2016 houve aumento de 69% nas apreensões de mercadorias, e de 2016 para 2017, outro aumento de 88%. Em outra fonte, os dados mostram aumento de 168% das apreensões de mercadorias no Metrô de 2016 a 2018. Já na CPTM, o aumento foi de 45% entre 2015 e 2016, de 20,5% entre 2016 e 2017 e continuava crescendo em 2018.
A linha 8-Diamante, no caso, é uma das linhas com maior número de marreteiros, e também campeã nos casos de vandalismo. A análise do traçado desta linha nos mostra que ela atravessa pelo menos três regiões de conflito urbano relacionado à ocupação das áreas lindeiras aos trilhos: na sua saída do centro de São Paulo, entre as estações Júlio Prestes e Barra Funda, a Favela do Moinho (Mapa 1, acima); ao atravessar a Marginal Pinheiros, debaixo do viaduto que faz a transposição da ferrovia até a Estação Presidente Altino em Osasco, a Favela do Areião (área próxima ao Jardim Humaitá, cuja remoção parcial publicizamos aqui há algumas semanas) (Mapa 2, acima); e toda a extensão entre as Estações General Miguel Costa e Santa Terezinha em Carapicuíba, onde aconteceu o episódio descrito acima (Mapa 3, acima, e vídeo 2, ao final da postagem). Mesmo após Carapicuíba (principalmente em Itapevi), a linha tem vários trechos de contato com ocupações e bairros autoconstruídos que crescem literalmente nos muros dos trilhos, tendo já ocorrido remoções de ocupações que aconteceram dentro das áreas das estações, como por exemplo na Estação Sagrado Coração em Jandira, cuja comunidade foi depois organizada pelo MST na Comuna Urbana Dom Helder Câmara (abaixo).
Ao olhar para esta situação urbana, fica claro que a questão não se resume ao controle de entrada oficial no sistema de trens (como é a questão do Metrô), mas de toda uma dinâmica de reprodução da vida na periferia que articula precariedades – de moradia, ocupação, renda, consumo, mobilidade. Assim, não se trata de uma questão social isolada ou equivalente ao comércio ambulante de rua, mas sim da característica central da estrutura de crescimento urbano do país: a simbiose funcional entre a “viração” ou o “bico” (o trabalho informal e precário) da população e a intervenção estatal que participa da sua origem e manutenção. Afinal, no caso em tela, é notório o planejamento estatal na construção dos conjuntos habitacionais de Carapicuíba, já afamados pela má qualidade construtiva e má localização (o Conjunto Habitacional Castelo Branco, implodido em 1991, é o seu melhor exemplo).
A dinâmica de comércio ambulante nos trens faz parte desta conjuntura, na qual também o usuário – morador desta periferia – faz parte ao consumir os produtos muito mais baratos do que em lojas oficiais: por isso ele também é alvo da operação de repressão ao comércio informal. Ao analisar a implantação urbana da Linha 8-Diamante da CPTM, o que salta aos olhos é a dimensão de apropriação popular – que se estende à própria linha do trem, aos seus vagões e estações das mais diversas formas – de um imenso território produzido pelo clássico modelo de desenvolvimento urbano dos países da América Latina, que articula autopromoção da vida dos trabalhadores com intervenção estatal promotora de desigualdades. Há que se ver, no entanto, que tal apropriação popular também é a sua força de resistência ao modelo de desenvolvimento neoliberal em curso. Vejamos.
Independente da realidade urbana e do contexto de acirramento social de cada linha, o Governador João Dória anunciou em sua posse este ano a privatização da CPTM por meio da concessão das suas linhas, prometendo equiparar suas estações às do Metrô. Não está ainda claro, no entanto, o modelo de concessão: se a empresa apresenta déficit geral de cerca de 1 bilhão por ano, a situação financeira de cada linha é diversa. Enquanto linhas como 8-Diamante e 9-Esmeralda (Osasco – Grajaú) são sustentáveis e têm ganhos, outras acumulam prejuízos por conta de seus altos custos operacionais (como a 7-Rubi (Luz – Francisco Morato – Jundiaí) ou 10-Turquesa (Brás – Santo André – Rio Grande da Serra)). Se não houver subsídio cruzado (uma mesma concessão abarcar linhas mais e menos lucrativas), o plano do governador levará a um colapso do sistema na medida em que o Estado arcará com ainda maiores prejuízos.
Vemos então que a Linha 8-Diamante é central nesses planos. Porém, sua lucratividade é acompanhada da já citada alta taxa de vandalismo, além de apresentar um problema administrativo difícil para o Governo do Estado: ela passa por seis municípios (São Paulo, Osasco, Barueri, Carapicuíba, Jandira e Itapevi), sendo os últimos três com grandes problemas urbanos e falta de recursos. Percebe-se que a questão do Shopping Trem é bem mais complexa do que parece: os mesmos fatores que fazem a linha ter lucratividade em termos de administração institucional também são aqueles que a fazem ser campeã no comércio ambulante. Não é fortuito que uma coisa esteja relacionada à outra. Há aí uma série de fatores conectados, dentre os quais é importante ressaltar a relação entre a precariedade das estações no contexto urbano e da manutenção geral da linha com sua importância na mobilidade da região, numa extensão menor do que as irmãs deficitárias 7-Rubi, 10-Turquesa e 11-Coral (Luz – Estudantes), que também atravessam seis municípios cada.
Não é à toa, portanto, que a CPTM iniciou no segundo semestre do ano passado uma campanha contra o comércio ambulante justamente na Linha 8-Diamante. A alegação oficial é a de que tal comércio representa quase 40% das queixas dos usuários, que subiram 336% de 2014 (cerca de 3mil) para 2018 (cerca de 14mil). O novo presidente da companhia, Pedro Moro, ressaltou a questão logo na primeira reunião de imprensa do ano, dizendo ser um de seus objetivos à frente da empresa o combate ao comércio informal, com apoio da Secretaria de Segurança Pública e da Polícia Militar – intenção esta, como estamos vendo, já colocada em prática. Vemos, portanto, que o combate à apropriação popular da linha e de seu entorno – representadas pelo comércio informal e pelas ocupações que, na verdade, são em grande parte realizadas pela mesma população – é combatida de maneira casada pelos governos estadual e municipal.
Relatos de trabalhadores e usuários da CPTM (que não quiseram se identificar) à nossa equipe descrevem um cenário de guerra dentro do sistema de transporte. Seguranças e marreteiros, vítimas deste contexto urbano muito maior, estão se enfrentando cotidianamente, de maneira cada vez mais violenta, com casos graves de internação hospitalar (um vigilante foi apedrejado em dezembro passado também na Linha 8-Diamante e, segundo um relato, ficou em coma). Os seguranças, com baixíssimos salários, foram deslocados de seus postos habituais nas estações para dentro dos trens e plataformas para coibir o comércio – e vêm sofrendo sérias agressões, como mostra o primeiro vídeo. Há insatisfação geral dos funcionários da CPTM que atuam nas estações, que estão desprotegidos em locais como portões, bilheterias e catracas. Do outro lado, trabalhadores desempregados buscam seu sustento da maneira informal que sempre caracterizou a vida dos mais pobres no Brasil – cuja precariedade agora é louvada, não combatida, pelas reformas em vista.
A convivência entre eles sempre ocorreu de maneira equilibrada, pois, afinal, é bastante claro para ambos os trabalhadores o contexto da crise no Brasil e a necessidade de cada um “se virar como pode”. A declaração de guerra vem de cima, de maneira irresponsável e inócua. Trata-se da mesma força que, removeu as famílias do Jardim Humaitá; que demoliu um quarteirão e mantém a violência e a insegurança habitacional para a população da região da Luz (na chamada Cracolândia); que quase removeu 2 mil famílias na véspera do Natal no ano passado na Zona Norte; e que agora inicia um regime de “Tolerância Zero” na CPTM: a força da “liberação” de ativos públicos para as PPPs e Concessões. Estamos vivendo uma nova fase de produção do urbano, na qual o aumento da violência estatal e a militarização fazem parte da “gestão de ativos” na qual se transformou a administração das cidades. E, para que isso aconteça, as resistências representadas pelos modos populares de produção da cidade e reprodução da vida precisam ser eliminados, pois são eles que detêm o domínio de muitos territórios urbanos hoje desejados pelo capital.
* Respectivamente, pós-doutoranda na FAU-USP, doutorando na UFABC; pesquisadores do LabCidade.
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