Por Aluízio Marino e Isadora Guerreiro*
Recentemente publicamos um artigo sobre a alteração no decreto federal 5.123 de 2004, que versa sobre o registro, a posse e a comercialização de armas de fogo e munição no país. Naquele momento destacamos a forma como tem sido definido, pelo Presidente e seu governo, a concepção dos “cidadãos de bem”, que possuem o direito a posse de arma. O cidadão “do mal”, que não possui esse direito é, paradoxalmente, como mostramos no referido post, aquele que está mais vulnerável a violência urbana, ou seja, se torna o cidadão mais “matável”.
Nesse texto, queremos mostrar uma outra faceta da violência urbana que afeta os mesmos cidadãos “matáveis”: as mortes por intervenção policial. O Brasil é o país onde a polícia mais mata e um dos que ela mais morre. E a análise recente mostra que a situação está piorando. Segundo os dados organizados no “Monitor da Violência”, entre 2016 e 2017, o número de vítimas em confronto com a polícia cresceu 19%. Já o de policiais mortos caiu 15%. Isso pode ser entendido pela opinião pública – em particular aquela alinhada ao novo governo federal – como um dado positivo: a polícia evidentemente mata pessoas “matáveis”, o que não pode ser considerável, portanto, crime. Crime seria matar o “cidadão de bem”, nessa mesma lógica discricionária.
Tal pensamento está procurando ser regulamentado pelo atual Ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, autor de um “Pacote anticrime” que foi enviado ao Congresso Nacional no último dia 19 de fevereiro. Esse projeto propõe algumas alterações preocupantes ao código penal brasileiro; entre elas a proposta no artigo 23, especificamente com relação aos homicídios cometidos por agentes públicos.
A proposta do Ministro é inserir um parágrafo que estabelece novos critérios para as mortes por intervenção policial. A nova redação garante que “o juiz poderá reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. Entretanto, como definir de forma objetiva o medo, a surpresa ou a violenta emoção? A alteração proposta pelo ministro estabelece um critério subjetivo que, segundo seus críticos, beneficiaria a atuação de policiais criminosos, alinhados a grupos de extermínio ou milícias urbanas. Queremos chamar a atenção para o fato de que a proposta de Moro não é apenas um salvo conduto para a atuação ilícita de agentes de segurança. Ela faz parte da regulamentação – e, portanto, da normalização – de uma gestão militarizada da sociedade, da qual o urbano tem tido papel importante.
Vemos que as mortes por intervenção policial não acontecem em qualquer lugar da cidade, onde estariam pretensamente protegendo os “cidadãos de bem”. Mesmo no estado de São Paulo, onde verificamos uma diminuição consistente dos homicídios em geral, as mortes por intervenção policial aumentaram entre 2013 e 2018. A partir dos dados disponibilizados no portal SSP – Transparência é possível verificar a geografia dessas mortes. O mapa de calor abaixo evidencia o óbvio: a ação letal dos agentes de segurança públicas se concentra majoritariamente em territórios populares da região metropolitana: áreas periféricas e o centro da cidade. Nos mesmos locais onde mostramos, no post anterior, que se localizam os “cidadãos matáveis”.
Além da concentração da letalidade policial, indicada pelas manchas mais escuras, a cartografia indica também as 22 delegacias de polícia onde se concentram a maior quantidade de ocorrências que resultam em mortes por intervenção policial. A tabela abaixo organiza o total de ocorrências pelas delegacias de circunscrição. Cabe destacar que o total de ocorrências não é sinônimo de total de vítimas, já que uma ocorrência pode concentrar mais de uma vítima.
Além disso é de conhecimento de quem investiga a violência urbana que os dados apresentados nas estatísticas sobre violência policial são subestimados. A falta de transparência, entre outros fatores, não pode ser colocada na conta da dificuldade burocrática. Do ponto de vista da gestão social militarizada, ela é parte constitutiva da produção de uma realidade, cuja função é justificar um aumento discricionário da violência. Não possuímos, por exemplo, estatísticas sobre a atuação de grupos de extermínio e milícias.
A violência policial é, portanto, uma das dimensões da gestão territorial e urbana. Faz parte do cotidiano de territórios populares onde, muitas das vezes, a polícia é o único “mediador” do poder estatal. A atuação das forças policiais nesses territórios – somadas a presença de milícias, e exércitos privados – configuram um estado de exceção. Nestes termos, a violência não se dá apenas no momento do homicídio cometido pela polícia, mas também em outras relações mediadas por esses grupos para-militares: grilagem de terras, despejos, cobranças de aluguéis e taxas ilegais.
Assim, vemos que o Pacote anticrime do Ministro Moro não está preocupado em diminuir delitos, como os homicídios executados por forças públicas de segurança: ao tornar suas justificativas mais subjetivas, apenas retira a alcunha de “crime” de fatos concretos que não apenas continuarão acontecendo, como, do ponto de vista do governo que ele representa, devem continuar acontecendo e aumentando. Afinal, matar os “matáveis” parece ser uma ação legítima dentro de uma lógica que, desde o início, discrimina as pessoas por meio de uma classificação daqueles “com” ou “sem” direitos.
* doutorando na UFABC, pós-doutoranda na FAU-USP; pesquisadores do Labcidade.
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