Foto: Paula Santoro

Por Paula Santoro*

Apesar serem tantos os trabalhos e discussões sobre mulheres, a casa e a cidade, várias agendas ainda não foram investigadas e merecem serem aprofundadas. Neste 8 de março – Dia Internacional da Mulher – compartilhamos, inspiradas nas pesquisas realizadas no LabCidade FAUUSP, alguns temas que acreditamos serem importantes para desenvolvermos de forma mais consistente se quisermos caminhar adiante na construção de cidades mais equânimes e justas.

Nossos trabalhos têm se apoiado em diversas pesquisas norte-americanas e europeias que, desde os anos 1970, apontavam para a invisibilidade das mulheres na cidade e no planejamento urbano. Estes, mostram as diferentes vivências das cidades, resultado direto da construção social e cultural sobre cada papel de gênero, da divisão sexual do trabalho e dos históricos processos de construção do urbano. Mas as cidades, as mulheres, não são as mesmas, não vivem a mesma cidade, da mesma forma.

Ainda são poucas as abordagens que têm o Sul Global ou a América Latina como perspectiva. Precisamos encontrar, ler, sistematizar a produção acadêmica (e não acadêmica! dar vozes aos excluídos!) que venha de encontro com a realidade latino-americana. E também, que dialogue criticamente com as chaves de investigação utilizadas historicamente para a compreensão da América Latina – como as desigualdades de classes sociais, pobreza, periferia, desenvolvimento e globalização – através de método interseccional, que considere os marcadores sociais da diferença. Afinal, ser mulher negra periférica é uma experiência de cidade completamente diversa da minha, professora universitária, branca.

Susan Fainstein e Lisa J. Servon afirmam que as diferenças de gênero estiveram invisíveis em grande parte da história do planejamento urbano, uma vez que muitos dos trabalhos estiveram apoiados na tradição modernista que pedia uma abordagem universalizante. Mesmo as urbanistas que estavam dedicadas à melhorar as cidades para os mais pobres, como Jane Jacobs, não tinham uma abordagem que se preocupasse explicitamente com gênero ou com outras desigualdades. Ainda assim, é preciso realizar um resgate histórico desses trabalhos no Brasil, buscando entender de que maneira a questão de gênero apareceu (ou não) nos trabalhos de urbanistas mulheres que não tinham tal abordagem específica. A própria Jane Jacobs hoje é considerada uma feminista não declarada, por alguns…

Alguns sempre perguntam: por que o planejamento das cidades deve ter uma abordagem de gênero? Certamente porque o planejamento tem como missão servir ao interesse público e estes interesses são múltiplos. Também o debate sobre a cidade deve dar voz aos excluídos que historicamente não tiveram voz. O desafio também é metodológico.

Foto: Marina Harkot

Mas já existe uma produção de leituras e propostas para as cidades em curso, que inclusive merecem ser atualizadas. Muitos trabalhos sobre o urbano, por exemplo, apontam a ausência da abordagem de gênero no urbano através de um pensamento binário – casa/cidade, público/privado, moradia/trabalho – que hoje é criticado por reforçar os papeis binários. Estes são os trabalhos que indicam que as mulheres estiveram historicamente relegadas ao mundo privado, da casa; ao passo que os homens ocuparam o mundo público, do trabalho, da política e da comunidade. Estas são até hoje formas de ler a cidade, diferenciando estes papeis e lugares. No entanto, na hora de propor transformações para a cidade, é necessário fazer uma leitura crítica sobre estes duplos. O raciocínio binário reforça oposições – como moradia e trabalho, trabalho reprodutivo e trabalho produtivo, esfera pessoal e esfera política – em dualismos que obscurecem as conexões intrínsecas existentes entre todas essas (e outras) categorias. Propostas não devem reforçar o caráter privado do trabalho reprodutivo, majoritariamente feito por mulheres, e o caráter público do trabalho produtivo. Assim, ao reforçar a existência desses binômios, são dificultados debates que tratem o planejamento urbano como uma arena de trabalho que articule seus vários temas de forma transversal tais quais, por exemplo, habitação, transporte, trabalho, economia, lazer e comunidade. Bem como, enevoam outras desigualdades, que de forma interseccional, como ser periférico, diferenças de raça, entre outras.

Algumas autoras, como por exemplo Paula Soto Villagrán (chilena que é professora em universidade pública do México), colocam que a construção destas dicotomias foi e ainda é importante como parte das teorias que viriam a estruturar o patriarcado como modo de analisar o espaço urbano. A luta contra o patriarcado é fundamental para as lutas anti-capitalistas, mas segundo várias autoras, não deve-se criar uma hierarquia de importância destas lutas. Para Soto, o reforço dos papéis femininos e masculinos nas cidades se dá, por exemplo, nas representações de feminilidade associadas à formas arquitetônicas – masculinas são sólidas, poderosas, lineares e vertical e femininas como delicadas, abobadadas, e tudo que é curvo… –; a contínua invisibilidade das mulheres na vida urbana… Seguem reforçando o binômio que estrutura uma ordem patriarcal que reforça ou pode transformar as construções em torno dos papéis femininos nos processos de produção e reprodução. Se aplica por exemplo na polêmica atual “vai de rosa ou vai de azul?”.

O enfoque de gênero, nos anos 1970 no Brasil, pareceu aterrisar a partir da agenda de estudos sobre o desenvolvimento. Foi um período de trabalhos que estudaram o desenvolvimento, o crescimento, a pobreza, geralmente denunciando a precariedade da existência dos trabalhadores nas cidades. Quando nos anos 1990 a ideia de planejamento urbano com enfoque em gênero começa a ser movimentada no país, ela parece se dar através da tradução da pobreza, para um olhar voltado à pobreza das mulheres. As medidas recomendadas para as políticas do “desenvolvimento” seriam, então, políticas voltadas para assegurar o aumento da produtividade das mulheres, consideradas como políticas antipobreza. Elas precisavam estar integradas no processo de desenvolvimento, eram tidas como um recurso “não aproveitado” (Women in Development ou Gender and Development eram termos usados então). Mesmo com este enfoque “produtivista” que merece muitas críticas, estes trabalhos trouxeram propostas até hoje relevante para as mulheres, como a titularidade feminina da propriedade; a revisão dos horários de funcionamento de serviços públicos para compatibilizá-los aos horários das famílias em que todos trabalham; e aumentar a produtividade, competitividade e valorização cultural dos trabalhos tradicionalmente femininos. E esta também segue sendo uma agenda para planejadores, pois as desigualdades continuam presentes, mas certamente merece ser atualizada: muitas vezes esteve mais associada à produtividade da mulher dentro do espaço reprodutivo, que a uma revolução nos modos de usar e viver a cidade.

As mulheres são precursoras nos movimentos sociais, muitas vezes nascidos face às lutas por equipamentos, serviços, políticas. Pesquisas sobre as políticas públicas urbanas para as mulheres precisam ser feitas e também merecem ser atualizadas! As alterações na família brasileira mostram que menos da metade da população brasileira não é mais a família “heteronormativa” – mulher, homem e filhos –, tida como “tradicional”. E uma das famílias que mais cresce é a monoparental com filhos e, dentro deste grupo mulheres com filhos. Esta nova demografia certamente irá transferir a luta pela divisão do trabalho doméstico entre mulher e homem para uma luta pela maior presença do Estado no suporte à estas mulheres, para que possam ter autonomia. Ou ainda, políticas de auxílio à idosos, e às mulheres idosas, emergem como necessárias. Assim, a investigação sobre políticas públicas que beneficiem especialmente as mulheres, abarcando a diversidade de suas condições de vida, é premente na construção de uma abordagem de gênero no planejamento urbano. Debate sobre a reforma da previdência, sobre formas de reorganização do trabalho (a agenda de trabalho ininterrupto, 24/7), são temas urgentes para as mulheres.

As alterações nas condições do trabalho e na evolução do grau de desigualdade da renda do trabalho, nas últimas décadas, sinalizaram para uma maior entrada das mulheres, jovens, não brancas, de escolaridade baixa, nos “trabalhos de salário de base” – aqueles com remuneração até 1,5 salários, formais e informais. Qual significado desta alteração na vida das mulheres e na vivência das cidades? Ainda está para ser compreendida. Estes dados exigem perspectivas interseccionais para sua análise, não mais explicada exclusivamente a partir da chave da classe social.

Ainda, há um crescente revisitar de teorias sobre os espaços públicos, o sentido do público e os bens comuns a partir da perspectiva feminista, como por exemplo, teorias ligadas ao direito à cidade (por exemplo, entoadas pela profa. Rossana Tavares (UFF-RJ), e aos bens comuns, como a Silvia Federici, que trabalha a associação do feminismo com a política dos “commons”. Se os comuns correspondem a uma ideia que ganha relevância para a luta anticapitalista a partir das resistências à expansão das fronteiras do capital sobre os territórios, como um projeto político coerente, as mulheres e suas históricas e novas formas de cooperação social revisitam o termo e se apropriam desta luta. São elas as que muito cooperaram entre si, historicamente, na sua própria organização da vida cotidiana, articulada em uma rede de relações sociais. São elas que organizam e fazem a cooperação, desde formas de cuidado compartilhadas, creches, hortas comunitárias, compras coletivas, cozinhas coletivas, entre tantas.

Inclusive por isso, é recorrente, quando se fala em planejamento participativo, ouvir críticas sobre a indisponibilidade da “comunidade” em participar – seja pelo formato, seja pelos horários propostos para as audiências públicas e oficinas. Tal indisponibilidade é ainda maior entre as mulheres que, mesmo com agendas marcadas à noite ou aos finais de semana, fora do horário convencional de trabalho, ainda têm que enfrentar dupla ou triplas jornadas nos cuidados consigo, com a família, da casa, do trabalho. Ainda, há a questão da escala de planejamento que, no Brasil, embora o enfoque seja o planejamento na escala municipal, ainda é preciso superar métodos de participação centralizadores e tecnicistas, promovendo um planejamento “de baixo para cima” e com verdadeira participação social. Para isso, inclusive, é preciso encarar criticamente, sem muita romantização, o que é a própria ideia de “comunidade” e de participação social.

Há muitas autoras que apontam que se o Estado não está atuando para enfrentar as necessidades da população (uma realidade presente especialmente nas periferias das cidades brasileiras) as redes sociais de ajuda mútua exercem um relevante papel, bastante conhecido por mulheres que contam com vizinhas e familiares, por exemplo. Posto isso, de que maneira planejar na escala da comunidade e com a comunidade?

Foto: Marina Harkot

A reivindicação da participação política é uma das lutas fundantes do movimento de mulheres. Mais recentemente, após o período constituinte, houve a emergência de uma multiplicidade de movimentos sociais, cobrando reconhecimento e participação política, que tem forçado uma ampliação dos estudos de democracia, para além das instituições que conformam as estruturas do poder político na sociedade. Ações afirmativas e cotas têm sido um instrumento para romper, parcialmente, com as barreiras à participação de mulheres. Entretanto, não basta ser mulher – a bandeira defendida por essas mulheres que ocupam tais espaços precisa ser pelos direitos das mulheres, uma bandeira feminista. E quais são as pautas femininas e feministas? Quais pautas trabalharão para a prevenção (não apenas a remediação) da violência? Quais darão maior autonomia na mobilidade das mulheres pela cidade?

Muito já se pensou sobre as pautas… Várias pesquisadores já se debruçaram sobre as agendas dos movimentos de mulheres e de outros movimentos sociais, como vários trabalhos sobre mulheres liderança dos movimentos de moradia, sobre o papel das mulheres nos mutirões ou, ainda, as mulheres negras na luta por água e por condições básicas de infraestrutura, que sinaliza as diferentes formas de opressão que são vivenciadas na cidade. Quais são as pautas dessas mulheres e como essas pautas cruzam com as questões de gênero?

Qual será uma abordagem interseccional para as políticas urbanas para além das cotas? Nos Estados Unidos, as interseccionalidades (intersectionalities), constituem um campo de estudos específico, com autoras como Kimberle Crenshaw, Angela Davis, entre outras que explicam a necessidade de se estudar gênero e raça de duas maneiras: cruzamento dessas variáveis e análise em separado. Segundo Kimberle Crenshaw, “mulheres negras experimentam às vezes a discriminação de modo similar ao experimentado pelas mulheres brancas; às vezes, elas “partilham experiências similares às dos homens negros”; às vezes, “a experiência da dupla discriminação é vivida com base no gênero e na raça” (1989).

Transpondo para o urbano é preciso, por exemplo, compreender os territórios populares e as diversas formas de vulnerabilidade – agora lidas como opressão, subalternidade, recuperando a literatura decolonial. É necessário, por exemplo, rever o conceito de periferia. Mas o que significa fazer novas leituras a partir desta chave? Envolve por exemplo aprofundar leituras homogeineizantes, por exemplo, sobre quem está sendo removido. Envolve outros métodos, que contem com a experiência, por exemplo, de ser negra periférica, entre outras experiências, abrindo espaço para que os sujeitos exerçam seu lugar de fala, mas é também aproveitar das potencialidades metodológicas de carregar determinada identidade e ocupar determinado espaço para, mais que descrever trajetórias, experienciar o urbano.

Desta forma, certamente, estaremos revendo o conceito clássico de segregação adotado pelos estudos urbanos brasileiros. A segregação residencial no Brasil – a separação espacial de grupos sociais em espaços relativamente homogêneos e distantes entre si – tem um aspecto racial, entretanto, as leituras sobre o fenômeno normalmente associam o efeito às desigualdades de classe social, sem se aprofundar na maneira como estas afetam e são afetadas pelas desigualdades raciais. Assim, a exemplo da segregação, são necessárias novas leituras da cidade sobre questões que, considerávamos, já ter investigado à exaustão.

Ainda que muitos temas mereçam aqui serem levantados – como as diferenças na mobilidade urbana, a presença feminina no trabalho do cuidado, entre tantos – um deles merece especial atenção, o da violência. A violência é uma preocupação constante no cotidiano das mulheres, que pode imobilizá-la ou exigir estratégias muito específicas para viver. A violência de gênero nos espaços públicos; a violência dentro de casa, por parte dos próprios companheiros e familiares; a violência do mercado de trabalho, com suas práticas e regras desiguais; a violência do Estado, quando da necessidade de se recorrer à uma delegacia para realizar uma denúncia, por exemplo, entre as tantas outras vivenciadas de maneira diferente pelos vários grupos de mulheres, aprofundadas pela cor, orientação sexual, hábitos, local de moradia…

No campo do planejamento urbano, esta violência se dá de várias formas. A transitoriedade permanente – ou seja, as constantes remoções forçadas daquelas famílias que vivem em contextos de informalidade urbana – faz com que a troca de local de moradia seja, forçosamente, constante. E, num contexto em que, entre as famílias pobres, boa parte delas é de famílias monoparentais chefiadas por  mulheres (negras), as vítimas da política urbana que ameaça, remove e ignora a existência consolidada, mesmo que informal, de territórios populares são, especialmente, as mulheres. De que maneira tal violência se manifesta no urbano com um viés de gênero?

E como fazer para dar esta guinada de pensamento urbano? É fundamental engajar-se em novos métodos de planejamento, sejam eles denominados de insurgente, disruptivos, abolicionistas… Vamos ter que nos reinventar!

* Professora FAU-USP e coordenadora do LabCidade