Por Débora Ungaretti, Larissa Lacerda e Martim Furtado*
Nos dias 24 e 25 de julho, mais de 250 famílias ficaram sem casa e sem nenhuma alternativa habitacional após reintegração de posse de três terrenos situados na comunidade conhecida como Jardim Flor de Maio, que fica no distrito do Tremembé, Zona Norte de São Paulo. As famílias encontraram abrigo na casa de conhecidos ou familiares, ou em outras ocupações tão ou mais precárias quanto aquelas que foram demolidas, várias das quais também estão sob risco de remoção.
Foram removidas três ocupações: Brinco de Princesa, Boca de Leão e Orquídea, numa região que fica no extremo norte da capital. Elas ficavam próximas ao entroncamento da Rodovia Fernão Dias com as obras do Rodoanel, que têm impactado largamente uma região historicamente marcada pela vulnerabilidade e precariedade habitacional. Duas das ocupações estão em área demarcada como Zona Especial de Interesse Social (ZEIS).
Nos últimos três anos, o número de ocupações de moradia têm crescido nas periferias da cidade de São Paulo: só na região do Tremembé, de acordo com pesquisas da equipe na região, mais de vinte novas ocupações abrigam milhares de famílias. As remoções recentes das ocupações que ocorreram na semana passada são a expressão mais recente do aprofundamento da crise habitacional em São Paulo.
Público e privado, urbano e rural, posse e propriedade se confundem em um complexo nó fundiário do loteamento irregular Jardim Flor de Maio — ou Chácara Santo Amaro, como prefere chamar o suposto titular de todo o bairro de mais de 400 mil metros quadrados. O proprietário responde por mais de 300 ações judiciais envolvendo esta e outras áreas situadas na Zona Sul de São Paulo: dezenas de reivindicações de usucapião, centenas de execuções fiscais por não pagamento de IPTU e de taxa de lixo, duas ações civis públicas que envolvem discussões sociais e ambientais, além de estar envolvidos em duas desapropriações — da CDHU e do Metrô — que envolvem mais de 14 milhões de reais em indenizações.
As circunstâncias que levaram as famílias a participarem das ocupações recentes no Tremembé, em terrenos até então sem uso, são diversas: perda de emprego, baixos salários, despejos, aumento dos valores de aluguéis ou remoção em decorrência das obras do Rodoanel. A heterogeneidade também é uma marca dessas ocupações de moradia, seja pela forma de organização ou pelos meios que foram utilizados para acessar uma casa ou um lote no terreno ocupado.
Uma das 38 famílias da Brinco de Princesa, a primeira a ser removida na manhã do dia 24 de julho, guarda os recibos do pagamento que fez pela sua casa. Agora, a família busca um outro lugar para viver enquanto seus pertences ficam empilhados na garagem do pastor da igreja local e suas filhas dormem na casa de uma conhecida.
Já a Boca de Leão, como relata um ex-morador, nasceu a partir da organização mobilizada por membros de três igrejas evangélicas da região. Com muitas famílias perdendo o emprego e sendo despejadas por não conseguir mais arcar com os custos do aluguel, o terreno foi ocupado. Segundo contam muitas moradoras, a área estava abandonada há décadas, servindo como ponto de desova de corpos. Por cerca de dois anos, 64 famílias moraram na ocupação Boca de Leão.
Na Orquídea, a última a passar pela reintegração de posse e a maior em termos populacionais, com cerca de 150 casas, a ocupação foi organizada por uma liderança comunitária conhecida da região. Algumas famílias teriam pago pelo seus lotes, outras não. Uma moradora dessa ocupação que teve sua casa demolida na manhã do dia 25 de julho, sem ter para onde ir, doou todos os seus pertences pouco antes da reintegração começar.
01Famílias com seus pertences na rua, sem ter para onde, durante execução da reintegração de posse (Foto: Débora Ungaretti)Se a perda da moradia, mesmo que em situações por vezes tão precárias, já é muito difícil para as famílias, a forma como as ações de reintegração de posse ocorreram tornou o cenário ainda mais perverso. Por um lado, havia imenso aparato policial, além de equipes privadas de segurança contratadas pelo proprietário. Por outro lado, apesar da presença da ambulância e de dois oficiais de justiça, não estavam presentes funcionários das Secretarias de Habitação ou de Assistência Social, tampouco havia informação sobre qualquer cadastramento das famílias pela prefeitura.
A reintegração na Boca de Leão iniciou-se por volta das 13h do dia 24. Em uma área com muitas casas de madeira e ligações clandestinas de eletricidade, quatro barracos se incendiaram. A Eletropaulo chegou apenas às 15h20 para cortar a fiação, numa demora que colocou todos os presentes em risco. Depois do primeiro foco de incêndio, o Corpo de Bombeiros também demorou 30 minutos para chegar. Sem nenhum isolamento, homens, mulheres e crianças circulavam livremente em meio às máquinas e ao fogo. Situação semelhante aconteceu na reintegração da Orquídea. Enquanto os tratores estavam fazendo as demolições, mulheres jovens e adultas caminhavam sobre os escombros das casas e barracos procurando pedaços de metal.
Durante os dois dias de reintegração, as moradoras reiteraram haver irregularidades no processo judicial e no cumprimento da reintegração de posse. Um dos principais pontos de tensão entre as famílias, de um lado, e os dois oficiais de justiça e o major que comandava a reintegração, de outro, era relativo à área que deveria ser reintegrada e, consequentemente, às casas e aos barracos que deveriam ser demolidos. As moradoras conseguiram retardar o ritmo acelerado das máquinas ao ocupar um dos imóveis, ao acionar, a todo o momento, suas advogadas e ao negociar com os oficiais de justiça e com o major a espera de um posicionamento da juíza sobre a delimitação da área objeto da ação.
Pouco antes das 15h da tarde do dia 25, a suspensão da reintegração da totalidade das áreas foi anunciada. Restavam apenas 17 casas das mais de 250 que foram removidas naqueles dois dias.
*Débora Ungaretti é advogada e mestranda em Planejamento Urbano e Regional na FAUUSP e pesquisadora do LabCidade.
Larissa Lacerda é socióloga, mestra em planejamento urbano pelo IPPUR/UFRJ e doutoranda em Sociologia na FFLCH/USP. Atualmente, é pesquisadora do LabCidade.
Martim Furtado é estudante do curso de graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAUUSP e bolsista de iniciação científica. Pesquisa processos de reestruturação urbana e produção do espaço nas periferias de São Paulo. Integra a equipe do LabCidade.
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