Edifícios de habitação pública para aluguel em construção no bairro de Poblenou, na área da ‘Super Ilha’, onde estão sendo implementadas alterações no espaço público voltadas à redução da circulação de veículos motorizados. Barcelona, julho de 2018 / Foto: Simone Gatti

Por Simone Gatti*

Na última sexta-feira, 14 de dezembro, entrou em vigor uma medida para ampliar a produção de habitação social da cidade de Barcelona, após passar por várias etapas de aprovação nos órgãos responsáveis do município e da comunidade autônoma da Catalunha. A partir de agora, todos os edifícios de habitação coletiva com mais de 600 m² de área construída localizados em área urbana consolidada, sejam novas construções ou grandes reformas, terão que destinar 30% de sua área para habitação social, a serem comercializadas a preços regulados, seja para compra ou aluguel. Grandes reformas significam mudanças de uso ou alterações significativas com aumento na área construída e redistribuição geral dos espaços, ou ainda execução simultânea ou sucessiva de outras obras de reforma ou reabilitação com custo igual ou superior a 50% do valor de construção. A previsão da prefeitura é que a implementação da lei signifique a produção de cerca de 400 unidades de habitação acessível por ano. A medida nasceu a partir de uma proposta de várias organizações sociais, e foi então incorporada pela gestão da Prefeita Ada Colau.

A aprovação da reserva de 30% para habitações populares na cidade de Barcelona representa uma verdadeira mudança de paradigma no planejamento urbano municipal, e pode se estender para toda a região da Catalunha. A reserva obrigatória de habitação social em novos empreendimentos já existia na cidade, mas somente nas áreas de expansão urbana ou em áreas de grande transformação (as áreas urbanas não consolidadas, como a área de transformação urbana do bairro de Poblenou, nomeada de 22@ – algo com as Operações Urbanas no Brasil). Com a aplicação dos 30% em todo o perímetro urbano, a inclusão sócio territorial passa a compor a lógica da produção da cidade, à medida que as novas habitações populares estarão distribuídas por todo o território, nas áreas onde há dinâmica imobiliária, e não somente onde há planos de desenvolvimento urbano ou nas áreas de expansão urbana, periféricas.

De acordo com reportagem do El País, estudos econômicos realizados pela equipe técnica da prefeitura apontam que a medida trará ainda um impacto sobre o valor dos terrenos residenciais na cidade, que poderão cair cerca de 25%. Considerando o aumento abusivo de 60% nos valores dos terrenos entre os anos de 2013 e 2017, estima-se que as novas regras funcionem de forma a evitar o processo especulativo dos últimos anos. O governo municipal garante, contudo, a viabilidade econômica dos empreendimentos. Para isso, considera o valor pago nos terrenos a serem empreendidos, ou seja, se o empreendedor comprovar que o terreno foi comprado por um preço muito alto, o caso será analisado e o percentual dos 30% poderá ser flexibilizado. Não está claro, no entanto, como essa flexibilização poderá ocorrer, e se ela poderá comprometer os resultados esperados na aplicação da nova regulamentação.

Ainda que o mercado privado tenha corrido para aprovar projetos antes da aprovação da medida, e livrar sua produção imobiliária desta obrigatoriedade – que produziria cerca de 282 unidades habitacionais de interesse social (segundo informou técnicos da prefeitura municipal para outra reportagem do El País, ele amplia seu papel na divisão do ônus de reservar unidades para a população de baixa renda. Isso já acontece em cidades como Paris e Viena, que aplicam medidas semelhantes alcançando um percentual de habitações acessíveis de cerca de 20% do total das moradias existentes, enquanto em Barcelona e no resto da Catalunha esse percentual é de apenas 1,5%.

Em São Paulo, no Brasil, tentou-se fazer algo parecido com o modelo francês na revisão do Plano Diretor em 2014, que criou a Cota de Solidariedade. Na versão paulistana, a metragem mínima de área construída para a exigência de reserva para habitação social não é 600 m² como em Barcelona, mas 20 mil m², e o percentual destinado para a produção habitacional não é de 30% mas de apenas 10% (área ainda que não é computada no potencial construtivo, ou seja, que é acrescida ao que o empreendedor já pode construir). Por pressões do mercado imobiliário, que receava que o sucesso de seus lançamentos pudesse ser comprometido com habitações populares no mesmo empreendimento, o instrumento sofreu uma forte flexibilização. O empreendedor ainda pode optar por doar o valor correspondente para o Fundo de Desenvolvimento Urbano – o FUNDURB, ou então ceder um terreno em valor equivalente em qualquer lugar da Macrozona de Estruturação e Qualificação Urbana. Ou seja, a probabilidade de termos famílias de diferentes faixas de renda compartilhando o mesmo edifício em várias áreas da cidade é ainda bem baixa. Segundo relatório da Prefeitura de São Paulo, desde a aprovação do Plano Diretor, a Cota de Solidariedade foi aplicada em apenas cinco casos, todos eles com o depósito dos valores correspondentes no FUNDURB, e nenhuma unidade de HIS produzida no novo empreendimento.

Outra diferença importante em relação a reserva para habitação social em Barcelona é o conceito de vivienda protegida. Lá as unidades produzidas como HIS, mesmo que vendidas para o beneficiário final, não poderão ser comercializadas posteriormente a preços de mercado. Elas permanecem protegidas, com preços acessíveis e regulados, seja para compra ou para aluguel. Atualmente, o tempo que as unidades permanecem protegidas depende da forma como cada programa habitacional foi regulamentado. Há unidades que estão integralmente protegidas, e outras por tempo pré-determinado (por 10 anos, 20 anos, 30 anos). Fazer com que estas unidades não saiam do sistema de proteção e não sejam comercializadas a preço de mercado é outra batalha que a prefeitura municipal e as organizações em prol do direito à moradia em Barcelona estão travando, juntamente com as lutas para ampliar o parque de habitações públicas, contra os altos preços dos aluguéis, contra os despejos de inquilinos e os processos de gentrificação.

São batalhas arduamente enfrentadas nas grandes cidades brasileiras. Com exceção dos poucos programas habitacionais que oferecem a moradia para famílias através de concessão de uso ou locação social, as habitações populares no Brasil são majoritariamente de propriedade privada, o que não confere qualquer proteção à sua destinação futura, sendo comercializadas livremente pelas regras do mercado, o que faz com que os subsídios públicos sejam futuramente destinados às famílias de maior renda, e a necessidades habitacionais dos mais pobres continuem a crescer.

A experiência de Barcelona nos dá, portanto, duas referências importantes para repensarmos nossa política habitacional: a necessidade de proteção das unidades de interesse social e a pactuação da responsabilidade da sua produção com o mercado privado, a fim de desatarmos o nó da histórica produção desigual das cidades brasileiras.

*Simone Gatti é arquiteta e urbanista, pós-doutoranda e professora convidada da FAU USP, pesquisadora do LabCidade e do NAPPLAC USP. É representante do IABsp na Operação Urbana Centro e Visiting Scholar no Urban Democracy Lab da New York University.