*Por Raquel Rolnik
É sabido e notório que a renda de muitas famílias caiu durante a pandemia, e que isto afetou de forma particularmente dura inquilinos de baixa renda que já viviam no limite de sua sobrevivência, gastando uma parcela significativa desta renda para pagar o aluguel da moradia. Mas, ao contrário de muitos países atingidos pela pandemia, no Brasil, quem enfrentou dificuldades para pagar o aluguel e não contou com a disposição de negociação por parte de sua senhoria simplesmente foi para a rua.
O impacto do coronavírus nos aluguéis é ainda pior para os mais pobres. Segundo análise do Insper da Pesquisa de Orçamentos Familiares divulgada pelo IBGE, referente a 2018, famílias com renda de até dois salários mínimos gastam, em média, um terço de salário com aluguel. Este grupo corresponde a 29% das famílias que pagam aluguel, embora representem 24% da população. A média analisada pelo Insper de despesa com aluguel no Brasil (levando em conta todas as faixas de renda) foi de 0,58 SM, o que equivalia a 555 reais em valores de 2018. Sem nem ao menos considerar a alta do aluguel de lá para cá, é fácil perceber que com um auxílio emergencial de 600 reais, este cenário é impraticável para quem perdeu sua fonte de renda durante a pandemia.
Os pedidos de redução do aluguel no estado de São Paulo dispararam a partir de maio e chegaram a 59% dos contratos em junho, o maior número até agora — dados de julho ainda não foram divulgados — de acordo com levantamento do Secovi, divulgado pela Rádio Bandeirantes. Boa parte destes pedidos de renegociação do valor de aluguel acaba resultando em acordo, mas os despejos não pararam de acontecer durante a pandemia. De acordo com o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, já foram 4.000 ordens de despejo no Estado desde o início da pandemia até agora. E isto se considerarmos o mundo dos contratos formais… Sabemos que também no aluguel há um enorme universo de contratos informais e sinais evidentes — como o aumento do número de ocupações — de que os despejos neste setor têm crescido.
O aumento da vacância dos imóveis residenciais é outro dos indicadores deste movimento: o percentual de casas e apartamentos para locação residencial vazios no estado de São Paulo aumentou durante a pandemia, subindo de 9%, em março, para 12%, em julho — dados da Associação das Administradoras de Bens Imóveis e Condomínios de São Paulo, divulgados pela Agência Brasil.
Frente a esta situação, um silêncio prevalece: não há qualquer ação por parte do governo para garantir proteção às famílias que moram de aluguel. Mesmo cinco meses após o início da crise, mesmo com seus impactos econômicos, mesmo com a necessidade de ficar em casa, de poder ficar em casa.
Sem tampouco orientação oficial na Justiça, compete aos magistrados responsáveis pelos processos de despejo a análise individualizada dos casos. Já no âmbito legislativo, nenhuma lei foi criada garantindo moratória durante a pandemia, nem no estado de São Paulo, nem a nível federal — o presidente Jair Bolsonaro vetou o Artigo 9º do projeto de lei 1179/2020, que proibia, até 30 de outubro deste ano, despejos de inquilinos inadimplentes. Sem desistir, o movimento Despejo Zero, que luta contra as remoções de qualquer tipo durante a pandemia, se reuniu com o presidente da Câmara dos Deputados essa semana, pedindo que fossem votados os (abandonados) projetos de lei de proteção aos inquilinos e outros ameaçados de remoção.
Muitos clamam que o governo não pode, ou não deve, interferir na questão dos aluguéis. Pelo mundo, entretanto, vimos posturas diferentes, em países ricos, em pobres, em todos os continentes. O Anti-Eviction Map, do Projeto de Mapeamento Contra os Despejos (AEMP- San Francisco) mapeou as legislações de proteção à moradia pelo globo durante a crise da Covid-19.
Na Espanha, o governo aprovou a suspensão, por seis meses após o fim do estado de emergência, dos despejos por falta de pagamento de aluguel, medida que vence agora em outubro. Contratos que expirariam durante este período foram estendidos. Locatários em situação vulnerável recebem moratória no pagamento do aluguel caso o proprietário possua mais de 10 unidades habitacionais (após 3 ou 4 meses, os proprietários e inquilinos negociam uma liberação de 50% da dívida, ou o pagamento do aluguel atrasado durante os próximo três anos). Caso o proprietário possua menos de 10 unidades habitacionais, o locatário têm acesso a microcrédito subsidiado.
Portugal, Alemanha, Itália, Hungria, Canadá e Estados Unidos aprovaram, em algum momento da pandemia, legislação semelhante, protegendo famílias de despejos, em menor ou maior grau.
Mas não foi só na Europa e Norte América que se estabeleceu diretrizes de proteção ao direito à moradia. Na República Democrática do Congo, os despejos por falta de pagamento de aluguel ficaram suspensos de março a junho. Durante o nível 3 de lockdown, despejos ficaram proibidos de serem efetivados na África do Sul. A Argentina congelou o valor dos aluguéis e suspendeu despejos por seis meses a partir de março. Os governos da Colômbia, Bolívia, e Índia também aprovaram medidas de proteção contra despejos.
Ainda há tempo para proteger os inquilinos brasileiros. Os efeitos da crise sanitária sobre a situação de moradia ainda continuam, se prolongam, e é fundamental que se formule políticas públicas para minimizá-los. É evidente que muitos proprietários e locatários podem chegar a acordos, mas é também absolutamente necessário a existência de medidas de proteção para aqueles que não puderem pagar nem mesmo um valor reduzido.
*Raquel Rolnik é professora da FAU-USP e coordenadora do LabCidade. Coluna originalmente publicada no UOL.
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