Paula Victória Santos Gonçalves de Souza e Pedro Henrique Rezende Mendonça*
Este texto faz parte de uma série de publicações em nosso site com os artigos da equipe do LabCidade e parceiros no congresso Fórum SP 21: Plano Diretor e Política Urbana de São Paulo, a ser realizado de maneira virtual entre os dias 21 e 30 de setembro de 2021. Os textos enviados ao evento foram levemente alterados para estar aqui em uma versão mais enxuta.
Os eixos da transformação são o principal mecanismo de implementação da estratégia estabelecida no Plano Diretor Estratégico (PDE) de 2014 de adensamento ao longo da infraestrutura de transporte de média e alta capacidade. Conforme a lógica de implementação, esse adensamento é incentivado principalmente a partir da oferta de potencial construtivo, com coeficiente de aproveitamento máximo de 4 vezes a área do terreno nos eixos – nas outras áreas da cidade, denominadas miolos, o máximo é de 2 vezes. Os incentivos de potencial construtivo nos eixos também são dados pelo uso: áreas não residenciais, fruição pública e fachadas ativas possuem mecanismos próprios de compensação. Há ainda restrições de tamanho da unidade e número de vagas, estabelecidos para incentivar o aumento da densidade habitacional e o uso da infraestrutura de transporte público.
Todos esses dispositivos operam pelo contraste com a regulação dos miolos, onde o desenho dos empreendimentos seria menos restringido apesar do potencial menor. Com sete anos de vigência dessa regra, os dados de licenciamento de empreendimentos apontam que a produção imobiliária não aderiu de maneira igual nos diversos eixos da cidade. As tipologias resultantes divergem na forma de adesão aos incentivos oferecidos no plano.
Para observar as diferentes configurações de atividade imobiliária, mapeamos os dados de alvarás de aprovação e/ou execução emitidos pela Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento (SMUL) entre 2014 e 2020 para algumas regiões da cidade. Nos eixos do quadrante sudoeste da cidade, que abrangem principalmente os trechos centrais das linhas de metrô e os corredores de ônibus da Av. 9 de Julho e Av. Rebouças, observamos que, de fato, há uma concentração dos empreendimentos licenciados dentro das quadras de eixo, conforme modelo definido pelo PDE. Destacam-se as áreas em eixo no entorno da estação Vila Madalena do metrô e nas regiões de Pinheiros e Vila Mariana. Os empreendimentos licenciados fora dos eixos são menores em área construída, ou se encontram em área de operação urbana.
Este efeito de concentração da produção nos eixos se limita à região central. Nos eixos Radial Leste e Av. Itaquera, na Zona Leste, observamos uma dispersão de empreendimentos licenciados na área de miolos. É expressiva a concentração de empreendimentos no entorno do perímetro dos eixos, por exemplo entre a Av. Municipal e Av. Calim Eid, ao longo das linhas 3 do Metrô e 11 da CPTM. Uma área que chama a atenção pela concentração de novos edifícios é o bairro de Vila Matilde. Essa região se destaca pelo número de novos empreendimentos de porte menor, apesar de haver licenciamentos de maior porte menos numerosos dentro dos eixos.
Em outra escala, observamos um novo tipo construtivo nos miolos, que corresponde a grande parte destes licenciamentos difusos. São edificações de uso exclusivamente residencial em lotes ou remembramentos pequenos, apresentando baixo gabarito, cerca de 5 andares, não possuem fachada ativa, garagem ou equipamentos de áreas comuns como piscinas e playgrounds. Esse novo modelo conversa com as limitações impostas aos empreendimentos nos eixos, mas se dissemina pelos miolos de bairro sem qualquer incentivo de potencial construtivo. A abolição do número de vagas mínimas por empreendimento pode ter colaborado para disseminar esse tipo de empreendimento.
Quando comparamos os tipos de unidades habitacionais licenciadas em cada um desses recortes territoriais, vemos que também há diferenças na aderência aos instrumentos de produção de unidades de interesse social e mercado popular (HIS e HMP). Enquanto nos eixos centrais as unidades são quase exclusivamente produzidas para o mercado convencional, os empreendimentos na região leste apresentam grandes variações. Nota-se também uma concentração dos empreendimentos com unidades HIS e HMP em empreendimentos menores especialmente fora dos eixos, como no novo tipo construtivo supracitado, mesmo fora de Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), indicando um descolamento entre a produção prevista nos instrumentos – tanto eixos quanto ZEIS – e a dinâmica imobiliária de facto desses bairros.
No eixo da linha 1 do metrô na zona norte, observamos uma dispersão semelhante na direção dos miolos. Um número considerável de novos empreendimentos encontram-se na área de miolo, grande parte deles localizados próximos, porém ainda fora dos eixos. Essas áreas compreendem os bairros da Parada Inglesa, Vila Gustavo e Vila Nivi, por exemplo. Em contraste, na zona sul não é observado licenciamento de novas edificações, sejam elas dentro ou fora dos perímetros dos eixos. Essa característica indica que os incentivos oferecidos pelos eixos não criaram potencial de transformação que os distinguisse do resto do território, ao menos do ponto de vista do mercado imobiliário formal.
A partir dessas leituras, concluímos que os contrastes no tipo de atividade imobiliária dos eixos e miolos indicam um descasamento entre o modelo urbanístico proposto pelo PDE e as dinâmicas dos mercados imobiliários formais da cidade. Há um detalhamento minucioso do tipo de produto imobiliário esperado para os eixos que dialoga apenas com agentes e modelos de produção das áreas centrais da cidade, enquanto os mesmos incentivos e regras não fazem sentido para as dinâmicas de regiões como a zona leste e norte. Tal descasamento repercute, ainda que com outros mecanismos, o padrão histórico de focalização do debate da regulação urbanística nas áreas de mais alta renda e seus conflitos locais.
*Graduanda em Arquitetura em Urbanismo na FAU-USP; Arquiteto e Urbanista pela FAU-USP; pesquisadores do LabCidade.
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