Na semana passada, dia 19/05, uma audiência pública convocada pela Subprefeitura da Sé sobre o edital de concessão do Viaduto Julio de Mesquita Filho, no Bixiga, reuniu moradores – tanto formais quanto de rua –, comerciantes e grupos de cultura atuantes no bairro. Lotando o amplo espaço da escola municipal em que foi realizada a audiência, a maioria dos presentes se colocou criticamente quanto à forma atual do edital e trouxe vários questionamentos, na maior parte não respondidos pelo poder público. O coletivo Terreyro Coregráfico* leu na ocasião a carta que reproduzimos abaixo:
Nós, artistas atuadores do bairro do Bixiga que nos encontramos na encruzilhada do Terreyro Coreográfico, consideramos o edital de concessão do complexo Júlio de Mesquita Filho uma grave ameaça ao bairro do Bixiga. Uma grave ameaça à sua memória, sua cultura, seus moradores e atuadores em geral. Esse edital se mostra porta de entrada para a especulação imobiliária e, consequentemente, abertura clara para um processo de GENTRIFICAÇÃO DO BAIRRO DO BIXIGA Isso significa: expulsar o povo da terra que já habita para introduzir um “novo perfil” de moradores, elitizar um bairro popular, modificar o DNA do bairro para “valorizá-lo”, dar uma outra cara mais “limpa” pro bairro. As consequências disso: aumento dos aluguéis, expulsão dos seus moradores de origem, fechamento dos comércios populares, imposição de uma monocultura, com comércios e serviços que pelo seus preços não poderão ser usufruídos pelos atuais moradores e frequentadores do bairro, pois não levam em conta o cultivo do bairro, como sabemos, o interesse privado se preocupa apenas com o máximo lucro proveniente da exploração da terra.
Esse edital é sobretudo uma ameaça à essência do Bixiga, ao seu multiculturalismo fundante que lhe enriquece imensamente e lhe informa. Uma ameaça àquilo que faz com que o Bixiga seja o Bixiga. Acreditamos que seja importante, sim, melhorar as condições urbanas, paisagísticas e ambientais do bairro, mas queremos que isso seja feito COM O BIXIGA e COM O POVO DA TERRA DO BIXIGA, em acordo com os interesses públicos, para que esse POVO que vem construindo esse bairro há tanto tempo possa usufruir de melhores condições de vida. Mas esse edital não traz nenhuma garantia nesse sentido, ele dá total liberdade aos interesses privados e privatistas.
Isso porque os gestores públicos se recusaram a elaborar o texto do edital junto aos atuadores públicos do bairro. Passaram por cima de trabalhos que já vinham sendo realizados com êxito nos baixios do viaduto Júlio de Mesquita Filho. E realizaram uma Audiência Pública depois de o edital já estar todo desenhado e próximo à data final para recebimento de projetos.
Esses argumentos bastariam para pedirmos o cancelamento desse edital. E pedimos! Há um inquérito aberto junto ao Ministério Público Federal, de número 1.34.001.001833/2016-10, configurando esse edital enquanto um ato lesivo ao patrimônio artístico, estético, histórico e turístico do bairro.
Além desses argumentos, encontramos também algumas questões jurídicas que podem colocar em suspeita a legalidade desse edital.
O texto do edital diz que ele está baseado no decreto número 48.378/ 2007, que regulamenta os usos dos terrenos públicos nos baixos dos viadutos e que, de acordo com esse decreto, os gestores públicos poderiam ceder ou conceder terras públicas para interesses privados via licitação. Porém, esse decreto, por sua vez, está baseado em três leis, a lei 11.623/ 1994, a lei 13.426/ 2002 e a lei 13.775/ 2004, sendo que a primeira delas, e também a mais recente, de 2004, versa claramente que:
Artigo 1º – As áreas situadas nos baixos dos viadutos e pontes do Município, não utilizadas pela Prefeitura, serão outorgadas prioritariamente, mediante permissão de uso, a entidades de caráter social, filantrópico ou assistencial sem fins lucrativos e Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público – OSCIP, desde que estas apliquem a totalidade de suas rendas em suas atividades institucionais.
Portanto, esse edital passa por cima da lei vigente, que está acima do Decreto, ao propor uma concessão de área de baixo de viaduto para que o setor privado a explore comercialmente ao invés de permitir seu uso, mediante a permissão de uso, à sociedade civil já atuante no mesmo espaço.
Já o artigo 2º do Estatuto da Cidade nos diz:
A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as diretrizes gerais.
Destacamos a XIII:
audiência do Poder Público municipal e da população interessada nos processos de implantação de empreendimentos ou atividades com efeitos potencialmente negativos sobre o meio ambiente natural ou construído, o conforto ou a segurança da população.
Mais uma vez, repetimos: esse edital foi construído sem que fosse realizada nenhuma Audiência Pública, e sim, nos moldes em que se apresenta, ele se mostra abertura para efeitos potencialmente negativos para o bairro do Bixiga.
E para finalizar essas questões jurídicas, vale ressaltar que a Lei Orgânica do Município de São Paulo, no seu artigo 114, diz:
Os bens municipais poderão ser utilizados por terceiros, mediante concessão, permissão, autorização e locação social, conforme o caso e o interesse público ou social, devidamente justificado, o exigir.
- 1º – A concessão administrativa de bens públicos depende de autorização legislativa e concorrência e será formalizada mediante contrato, sob pena de nulidade do ato.
O que, no caso, não aconteceu. O edital de concessão do complexo Júlio de Mesquita Filho não passou pelo Legislativo.
E ainda o artigo 148 do capítulo I da Lei Orgânica, sobre a política urbana, diz:
A política urbana do Município terá por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade, propiciar a realização da função social da propriedade e garantir o bem-estar de seus habitantes, procurando assegurar:
I – o uso socialmente justo e ecologicamente equilibrado de seu território;
II – o acesso de todos os seus cidadãos às condições adequadas de moradia, transporte público, saneamento básico, infraestrutura viária, saúde, educação, cultura, esporte e lazer e às oportunidades econômicas existentes no Município;
III – a segurança e a proteção do patrimônio paisagístico, arquitetônico, cultural e histórico;
IV – a preservação, a proteção e a recuperação do meio ambiente;
V – a qualidade estética e referencial da paisagem natural e agregada pela ação humana.
E no artigo 149:
O Município, para cumprir o disposto no artigo anterior, promoverá igualmente:
I – o controle da implantação e do funcionamento das atividades industriais, comerciais, institucionais, de serviços, do uso residencial e da infraestrutura urbana, corrigindo deseconomias geradas no processo de urbanização;
Sendo assim, por mais que o edital cite algumas diretrizes que estão em acordo com a Lei Orgânica, ele deixa a critério do vencedor do edital cumpri-las ou não, interpretá-las em acordo com seus próprios interesses privatistas e não em acordo com os interesses públicos. E não leva em conta a deseconomia e o rasgo no tecido conjuntivo do bairro que a construção do viaduto provocou.
Sendo assim, se faz urgente a imediata suspensão do edital de concessão do complexo Júlio de Mesquita Filho e que a Subprefeitura tome partido das iniciativas da sociedade civil no sentido de ativar espaços públicos. Assim, propomos:
Uma Audiência Pública Permanente e concreta, Projeto Piloto com sustentação jurídica, para que nós, sociedade civil organizada, composta por moradores e atuadores culturais do Bixiga, possamos descobrir, junto da população, dos moradores do bairro, inclusive dos moradores de rua, dos atuadores culturais e sociais, dos comerciantes que já estão ali instalados, as vocações de toda essa área de 11.500 m² prevista pelo edital. Levando em conta que cada trecho do viaduto produz espaços muito distintos e essas diferenças devem ser escutadas para que se possa realizar qualquer proposta ali. Não podemos esquecer que alguns trechos nunca tiveram essa oportunidade, nunca foram efetivamente públicos, pois se encontravam fechados ao acesso do público desde a construção do viaduto, seja porque funcionavam como estacionamento, seja por conta da cessão de uso de um dos terrenos à polícia militar.
Isso será feito através de experimentações públicas concretas desses espaços, seja com feiras e festas populares que atuem junto à população, seja com cinema ao ar livre, práticas artísticas, sociais e culturais, palco de encontros e de debates públicos. Também com ações junto à subprefeitura que possibilitem uma maior permeabilidade desses espaços: retirada de grades, cercas e muros que atrapalhem ou impeçam a fruição pública desses espaços. Além dos cuidados básicos que a Prefeitura deve ter com qualquer espaço público: limpeza periódica, varredura, poda de árvores etc. Tudo o que for preciso para que todo esse trecho de 11.500 m² possa ser experimentado pelo Povo do Bixiga enquanto um espaço efetivamente público.
Propomos também que, enquanto isso, possamos descobrir e criar, junto à administração pública, outros modelos de parceria para requalificação paisagística, urbana e ambiental, para além das Parcerias Público-Privadas, uma Parceria Público-Público, onde a administração pública atue junto dos atuadores do bairro, dando suporte e infraestrutura para que essa requalificação seja feita pelos próprios atuadores, com investimento do dinheiro público de impostos que empresas pagariam à Prefeitura, revertendo-o a ações socioculturais, previstas em lei. Ou seja, para que o setor privado deixe de ser o protagonista nos processos de construção da cidade, e que o Público responda por si, e seja ele o protagonista, seja ele que defina o futuro dos Espaços Públicos da Cidade.
Finalizamos nossa fala com um trecho do preciso artigo da pesquisadora e escritora Sarah Kendzior, que se chama Gentrificação: os perigos da economia hipster:
A gentrificação propaga o mito da incompetência nativa: essa gente precisa ser importada para ser importante; e que um sinal do “êxito” do bairro é a remoção dos seus residentes mais pobres. O êxito real está em oferecer àqueles residentes os serviços e oportunidades que por tanto tempo lhes foram negados.
Quando os bairros experimentam certo desenvolvimento comercial, a prioridade dos trabalhos deve ser dirigida aos residentes locais que lutaram longamente para encontrar empregos próximos que paguem um salário digno.
Nos deixem aprender com os erros de Nova Iorque e San Francisco, ao invés de encará-los como modelos, e construir cidades que reflitam mais que apenas valores superficiais.
Com a Graça da Terra e dos Tempos,
Terreyro Coreográfico
19 de maio de 2016.
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*Terreyro Coreográfico dá nome à encruzilhada que confluiu coreógrafos, arquitetos, urbanistas, dançarinos, músicos, filósofos, poetas em coro na direção de se pensar, em ato, o público em suas várias dimensões; abrir ao público o que é público. Também dá nome à primeira manifestação dessa encruzilhada, seu primeiro projeto arquitetônico coreográfico realizado no baixo do viaduto Julio Mesquita Filho, no bairro do Bixiga, abrindo caminho para o projeto “Anhangabaú da Feliz Cidade”, da ‘arquiteta’ Lina Bo Bardi junto do Teat(r)o Oficina.
Republicou isso em diáriodaBorda.
Todo meu apoio e respeito ao coletivo Terreyro Coregráfico. Obrigado por lutarem contra o oportunismo urbanístico que claramente visa especular espaços alheios e sociais.
Para quem quiser conhecer mais sobre o projeto Anhangabaú da Feliz Cidade, segue texto publicado no Vitruvius e escrito pelas Arquitetas cênicas Marília Gallmeister e Carila Matzenbacher : http://goo.gl/cmAVTv
Não é porque o bairro é podre que precisa continuar podre, e pelo o que li no edital não tem absolutamente nada de obras para “ricos”. Moro em frente ao viaduto há 13 anos e até hoje não conseguia entender porque o descaso sempre está presente embaixo do viaduto. Garanto que as pessoas que encabeçam esses movimentos contra desenvolvimento não mora em frente ao referido viaduto para aquentar o cheio de merda, xixi, resíduos de alimentos estragados, comércio de diversos tipos de drogas, sexo ao vivo e todo tipo de coisas impossível de pessoas civilizadas conviver, daí vem vocês impedido que isso acabe? Não podemos viver nessa situação. O espaço é de todos e vocês não podem falar por todas as pessoas que moram no entorno, utilizam como passagem diariamente e sempre são roubadas. Sou a favor de projetos sociais funcionais, mas o que vocês querem é inadmissível.
Caro Nilton, sim, muitos de nós do Terreyro Coreográfico, moramos e trabalhamos no Bixiga, convivemos com o bairro. Habitamos os baixios do viaduto entre as ruas Major Diogo e Abolição de março a novembro de 2015, realizando ali festas com a comunidade, aulas públicas de dança, de música, de computação, apresentações gratuitas de filmes, de teatro, de dança, cuidamos dos canteiros e jardins.
Não somos contrários ao desenvolvimento como vc sugere no seu texto, mas sim contrários a um certo modelo que está em vigor, que simula um desenvolvimento que não é real, ou que se desenvolve expulsando os moradores que já atuam no bairro, devido a uma elevação do custo de vida – aumento do valor dos aluguéis, serviços com preços abusivos, etc.
Sugiro que façamos um encontro ao vivo para falarmos dessas e de outras necessidades do bairro do Bixiga. Estamos organizando para o dia 19 de junho, um domingo, um grande encontro do bairro, para pensarmos juntos o futuro dos baixios do viaduto. Topa? É tempo de atuarmos juntos!
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