Laisa Stroher, Guido Otero e Renato Abramowicz Santos (*)

Os cortiços são umas das formas de moradia popular mais antigas das grandes cidades, e junto com diferentes modos de morar precários, são muitas vezes invisibilizados. Por décadas os movimentos sociais cobraram a realização de um Censo dos Cortiços, mas apenas recentemente ele foi realizado, revelando a existência de pelos menos 18 mil pessoas vivendo em cortiços na área central, em sua maioria negras (63%) e com ganhos mensais de até 2 salários mínimos (85%), que vivem em 1.084 cortiços.

Os dados de 2022 foram apresentados em uma reunião de dezembro de 2023 do Grupo de Acompanhamento do Censo e, em março de 2024, em reunião do Conselho Municipal de Habitação da Prefeitura de São Paulo (CMH), quando os representantes tiveram acesso ao seu relatório síntese, ainda não divulgado ao público. Os dados aqui discutidos são desse relatório que tivemos acesso em função de alguns autores que aqui escrevem comporem o Grupo de Acompanhamento e o CMH.

Cortiços – ou pensões, como denominam seus moradores –, podem ser descritos como casas coletivas construídas para locação ou readequadas para este fim, nas quais há compartilhamento dos quartos e dos espaços de uso comum (banheiros, lavanderia e cozinha); estes algumas vezes em número reduzido frente ao número de habitantes, e podem apresentar condições de precariedade, como problemas de manutenção da construção, ventilação, iluminação, deficiência nos serviços de água, luz e esgoto. Junto às ocupações e favelas são espaços que permitem a manutenção da população de menor renda no centro.

Dentro da Comissão Executiva da antiga Operação Urbana Centro, o Censo dos Cortiços é uma reivindicação que partiu da sociedade civil há pelo menos 23 anos. Segundo o relatório, no início dos anos 2000 uma construtora teria usufruído de benefícios oferecidos pela Operação e não teria cumprido a obrigação de realocação dos moradores de cortiços afetados pela nova construção, infringindo a exigência prevista na própria da Lei da Operação, que dizia que nestes casos os moradores deveriam receber soluções habitacionais dentro do perímetro da Operação ou numa faixa de 500 metros dele.

Em 2003, um termo de referência para contratação do Censo chegou a ser elaborado, mas só foi levado adiante em 2017, quando foi aprovada a verba para sua contratação e realizada uma primeira chamada pública. Entre muitas idas e vindas – que envolveram a anulação de uma primeira contratação e a realização de um novo termo em 2021 – foi contratada a empresa Qualitest via nova licitação coordenada pela Secretaria de Habitação da Prefeitura de São Paulo.

Muito diferente do contexto em que foi originada a ideia do Censo, o centro de hoje passa por um boom imobiliário e é palco de um mosaico complexo de planos e programas que visam azeitar ainda mais a máquina imobiliária-financeira, como tratamos aqui e aqui. As ameaças de remoção e expulsão direta ou indireta a todas as formas populares de moradia estão ainda mais latentes, reconhecê-las e entendê-las ganha ainda maior relevância – assim como a necessidade de elaboração de políticas públicas efetivas e estruturadas para assegurar condições dignas de moradia para o elevado número de pessoas que aqui pagam aluguel para morar.

Depois de décadas de espera, quais são as questões que este Censo traz sobre a realidade dos cortiços? Quais respostas esperar em termos de políticas públicas?

Encortiçamento do centro como processo constante e dinâmico, revelador da importância de uma política habitacional no centro

Este Censo não é um retrato completo da questão dos cortiços na cidade, ele deixa de fora bairros que historicamente possuem uma concentração expressiva desse tipo de moradia, como é o caso da Mooca, Barra Funda e Pari. O Censo compreendeu um raio de 500 metros a partir do perímetro da antiga Operação Urbana Centro, que vigorou entre 1997 e 2021. Nasce defasado não só em relação às dinâmicas socioeconômicas desse fenômeno, mas em relação aos instrumentos de planejamento urbano discutidos e aprovados posteriormente pela administração pública.

A promulgação do Projeto de Intervenção Urbana do Setor Central (que já analisamos aqui ou mesmo aqui) em 2021 triplicou a área onde é incentivada a transformação imobiliária, mas o Censo continuou associado à extinta antiga Operação, criando um descompasso que prejudica seu uso como forma de guiar respostas do poder público e proteger os moradores de possíveis conflitos com a dinâmica imobiliária.

Dentro do perímetro adotado, podemos verificar cinco áreas nas quais há uma concentração mais intensa de cortiços, entre as quais se destacam três com maior número: o Bixiga/Bela Vista, o Brás e uma área compreendida por parte da Sé e Liberdade. Muitos estão inclusive no caminho da principal expansão imobiliária que adentra o centro, vinda dos bairros do setor sudoeste da cidade (como tratamos aqui).

LabCidade
Mapa 1 – Número de moradores por cortiços em 2022, retirado do Relatório Síntese do Censo de Cortiços da Região Central de São Paulo (2022) – clique aqui para conferir em tela cheia.

Já foram realizados outros cadastros pela Prefeitura para tratar desta questão, porém a diversidade de perímetros e de metodologias dificultam o acompanhamento das suas dinâmicas. Em 2001, o Programa de Atuação em Cortiços (PAC) da CDHU contabilizou 1.648 cortiços nas subprefeituras da Sé e Mooca, dos quais 812 estavam inseridos dentro do perímetro deste último Censo (2022). Em comparação, este censo apontou que no mesmo perímetro, 1.084 cortiços abrigavam 18 mil moradores, vivendo em média na proporção de 17 moradores por imóvel e 2 por quarto.

Não se trata de um simples aumento do número anterior, a pesquisa mostrou que 332 imóveis, dos 812 contabilizados anteriormente, foram substituídos por outros usos nesse meio tempo. Portanto temos 604 cortiços efetivamente novos na área estudada. Esta descrição remete à ideia de “áreas encortiçadas”, que têm vitalidade e são dinâmicas, ideia cunhada pelo pesquisador Luiz Kohara. Da leitura dos dados emerge uma enormidade de dúvidas não respondidas, que incluem uma reflexão sobre o papel das regulações urbanísticas que incidem sobre estas moradias e mais que isso, sobre a falta que faz uma política pública estruturada de habitação social no centro.

Dos 332 imóveis que deixaram de ser usados como cortiços, 57 viraram edifícios multifamiliares ou estacionamentos, uso comum dado aos terrenos que entram em estado de espera até o momento mais lucrativo para realização de um empreendimento imobiliário. Do que se tratam esses novos prédios? São empreendimentos públicos? privados? Para qual público alvo se destinam? Eles removeram os cortiços? Se sim, seguiram as exigências de realocação da população dos cortiços? Eles estão localizados em Zonas Especiais de Interesse Social (zonas que prevêem a prioridade de qualificação dos cortiços e soluções que permitam a permanência da população)?

Quando perguntados sobre os motivos que os levaram a optar pelos cortiços como morada, a resposta é simples, optaram porque possibilita o acesso a dimensões essenciais que envolvem uma moradia digna para além do espaço da casa em si: a maior proximidade ao trabalho (49%), menor valor do aluguel (44%), maior proximidade ao serviço de saúde (21%) e maior oferta de transporte público (20%). A maioria dos entrevistados (77%) faz a maior parte dos seus trajetos diários a pé e 88% demoram até 40 minutos para chegar ao trabalho, o que significa que economizam dinheiro e tempo no transporte.

A pesquisa também mostrou que o aluguel pago não é exatamente barato, 36% pagam entre R$ 401 e R$ 600 mensais, e 30% entre R$ 600 e R$ 800. Considerando que 28% dos moradores declararam renda familiar de até 1 salário mínimo e 27% entre 1 e 2 s.m, aqueles valores comprometem uma grande porcentagem dos seus ganhos. No mercado formal de aluguel talvez seja possível achar opções nessa faixa (principalmente considerando a opção de dividir uma habitação com mais pessoas), mas é um mercado que faz exigências restritivas (fiador, cheque caução, seguro fiança, comprovação de rendimento), e muitos imóveis ainda contam com custos condominiais elevados.

Isso faz lembrar a ausência de respostas do poder público ligadas a uma política de aluguel acessível e com condições de acesso compatíveis ao perfil socioeconômico dessa população, ainda mais se tratando do centro, um dos territórios com maior porcentagem de população morando de aluguel. Ao invés disso, vemos aumentar nos últimos anos as “Fake HIS” produzidas para venda via incentivos urbanísticos e PPPs, que não atendem a esse perfil populacional e ainda aumentam as ameaças de despejos e remoção.

Falta de divulgação e respostas que melhorem as condições de moradia dos habitantes dos cortiços

Entre muitas dúvidas e as dificuldades em se ter um acompanhamento preciso destas dinâmicas populacionais em um momento de intensa atividade imobiliária e emergência de novos instrumentos de planejamento, ficam ainda dois pontos importantes a serem registrados – e cobrados:

Em primeiro lugar, os dados finais do Censo de Cortiços foram apresentados em dezembro do ano passado no Grupo de Acompanhamento do Censo e, em março deste ano, em reunião do Conselho Municipal de Habitação (CMH). Ou seja, dois anos após o início dos trabalhos. Após 23 anos de espera, a promessa feita a este Grupo desde dezembro era de que, após a apresentação, todos os números e dados seriam amplamente divulgados e publicizados. Isso ainda não aconteceu. A demora na divulgação das informações que parecem estar prontas é inadmissível e sugere que a justificativa da demora seja mais de ordem política do que técnica, gerando dúvidas e desconfianças que fragilizam o processo.

Por último, o segundo ponto: não adianta apenas fazer o levantamento, a pesquisa e uma leitura da realidade, se isso não se reverter em planejamento e ações concretas na forma de políticas públicas que promovam a proteção e melhoria das condições de moradia das pessoas que pagam aluguel para viver no centro. O que historicamente estamos vendo em áreas que têm muitos cortiços como, por exemplo, em Campos Elíseos, é o poder público utilizando seu aparato e recursos para remover arranjos habitacionais populares – as pensões e cortiços entre eles, a exemplo do Projeto recém lançado para o Centro Administrativo do Governo do Estado de São Paulo e como já avaliamos em outros momentos.

Fazer um rastreamento e mapeamento dos cortiços para efetivar a remoção dessas pessoas e dessas formas de morar do centro da cidade é um dos riscos e perigos que se corre se o Censo não se voltar para elaboração de políticas habitacionais populares efetivas. Essa possibilidade nos coloca em alerta para acompanhar com atenção os desdobramentos e possíveis efeitos que esse Censo pode ter, para que não haja desvio nem traição à reivindicação histórica por moradia digna no centro da cidade.

 

(*) Laisa Stroher é professora da FAU UFRJ, pós-doutoranda na FAUUSP, pesquisadora do LabCidade, do Perifau da UFRJ e do LEPUR da UFABC; Guido Otero é arquiteto e urbanista e mestre em Planejamento Urbano e Regional pela FAUUSP e Renato Abramowicz Santos é pesquisador do LabCidade e do Observatório de Remoções.