Por Raquel Rolnik

Esta onda de calor atípica que vem atingindo São Paulo nos últimos dias não apenas causa desconforto, mas levanta questões cruciais sobre o próprio planejamento e gestão de nossas cidades e as medidas que precisam ser adotadas daqui para frente. É um sinal alarmante da emergência climática, que torna mais frequente a ocorrência de eventos extremos.

Não por acaso a sensação de calor é avassaladora. Estamos experimentando na capital paulista uma média de 2ºC acima da marcação histórica, conforme medição do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP). O aumento é maior, inclusive, do que a média global de crescimento da temperatura. Esse quadro nos coloca diante de um dilema urgente: como garantir conforto e qualidade de vida em meio a temperaturas tão altas.

É inegável que o atual modelo de organização urbana está centrado na emissão de carbono, o que resulta em uma quantidade significativa de emissões que agravam o aquecimento global. Fernando Túlio Salva Rocha Franco em sua tese de Doutorado, defendida em abril na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAUUSP), nomeia este modelo e explicita suas origens e forma de atuação: carbocêntrico. Segundo o autor, o transporte sobre pneus é um dos principais vilões nesse cenário. A queima de combustíveis fósseis gerada pelo uso de carros, motos, ônibus e caminhões, entre outros veículos, foi responsável por 61% das emissões de gases causadores do efeito estufa de São Paulo entre 2010 e 2017, de acordo com dados do Inventário de Emissões Antrópicas de Gases de Efeito Estufa.

É importante ressaltar que o modelo carbocêntrico de mobilidade não resulta apenas da opção pelo modal – automóveis, ônibus e caminhões – mas também do próprio modelo segregador de cidade, que exige longos deslocamentos cotidianos. Se, de um lado, a substituição dos combustíveis por matrizes mais limpas, com hidrogênio e eletricidade, seja necessária em uma espécie de “transição” energética na direção de menos emissões, por outro lado, essa mudança não enfrenta nem os desafios colocados pela intensidade da própria demanda – que não consegue ser atendida por esses modais –, nem o próprio modelo de expansão horizontal permanente.

Muito tem se debatido no campo do urbanismo acerca do tema da “cidade compacta”, aquela que exigiria muito menos necessidades cotidianas de deslocamento. Entretanto, essa ideia hoje é traduzida através da construção de torres de concreto e vidro, um modelo também altamente gerador de emissões, com baixíssima eficiência energética. Cada fachada e varanda “gourmet” fechada de vidro é mais uma estufa que demanda ar condicionado permanente para enfrentar as altas temperaturas.

A reprodução desse modelo de cidade, que em nada dá conta do aquecimento global, está refletida até mesmo na recente revisão do Plano Diretor Estratégico, marcado por um processo controverso de participação social e que levantou o intuito, mas sem qualquer prática, quanto à preocupação com as mudanças climáticas e o racismo ambiental.

É evidente que precisamos de uma abordagem mais integrada e proativa no planejamento e gestão urbana. O Plano de ação climática de São Paulo de 2011 foi um passo na direção certa, mas suas metas estão longe de ser cumpridas. Ao apresentar um balanço das metas estabelecidas e o que de fato foi realizado a partir desse documento, a tese de Fernando Túlio Salva Rocha Franco conclui que estamos completamente aquém do que deveríamos ter alcançado. Um exemplo desse atraso é a eletrificação do sistema de transporte coletivo, que deveria ter ocorrido há muitos anos mas questões de gestão, – incluindo a relação com a Enel e o modelo de concessão do transporte por ônibus –, têm impedido essas mudanças.

Precisamos, portanto, menos de planos e discursos e mais de ações de gestão concretas. Menos de um plano genérico com pouca capacidade de incidência nas políticas setoriais e mais processos internos, em cada um dos setores da administração, na direção da reversão do modelo carbocêntrico, em suas múltiplas dimensões.

 

(*) Raquel Rolnik é professora na FAUUSP e coordenadora do LabCidade