Tânia Rêgo/Agência Brasil

Por Isadora de Andrade Guerreiro*

No dia 27 de janeiro deste ano a Secretaria de Habitação de São Paulo (Sehab) divulgou uma planilha com 5.770 famílias do Auxílio Aluguel no município (cerca de 20% do total) que tiveram seu benefício bloqueado por 60 dias a partir daquela data, quase que a totalidade delas (5.760) por falta de comparecimento ao recadastramento chamado pela Prefeitura entre os dias 29 de outubro e 7 de dezembro do ano passado (dados acessados via Lei de Acesso à Informação). O bloqueio foi temporário, pois as famílias têm o direito de apresentarem presencialmente justificativa para o não comparecimento anterior e, também, documentação que comprove seu enquadramento às regras do atendimento habitacional provisório. Este prazo acaba agora, em meio à quarentena forçada pela pandemia da COVID-19, e aquelas famílias que não compareceram neste período deverão ter seus benefícios definitivamente suspensos. Não sabemos quantas dessas famílias ainda não compareceram ao recadastramento.

A Defensoria Pública do Estado de São Paulo emitiu no último dia 23 de março uma recomendação à Sehab que prorrogue o prazo para comparecimento presencial ao recadastramento até o final da quarentena e, principalmente, se abstenha de realizar qualquer corte de benefícios neste período, independente da justificativa. Até a última sexta-feira (27) não havia recebido resposta da Secretaria.

Gostaríamos aqui de ressaltar o impacto de qualquer corte deste benefício, em qualquer momento que ele aconteça, como já fizemos em outro texto recente. As famílias que passaram a pagar aluguel em áreas precárias da cidade com o Auxílio Aluguel não o fazem por escolha, mas porque foram removidas de maneira involuntária do lugar onde viviam. As remoções em áreas de risco são um caso à parte e que necessitam urgentemente de outra estratégia de ação, muito mais complexa do que o Auxílio Aluguel, por parte do poder público. Pois esta solução fácil tem se apresentado muito mais como uma criação de novos problemas – como a reocupação de outras áreas de risco.

A partir do que pude observar em pesquisa de campo com famílias beneficiárias do Auxílio Aluguel em localidades diversas da cidade, grande parte daquelas entrevistadas está pela primeira vez na vida alugando cômodos para morar, em função da política pública – que as removeu e, depois, iniciou o pagamento mensal. E, se não tiverem o benefício, não têm condições de arcar com esta despesa, retornando aos esquemas alternativos: ocupações, casas de parentes, adensamento habitacional, albergues ou mesmo a rua. Se o impacto destes tipos de moradia já é preocupante em tempos normais, o que dizer de tempos de pandemia, quando as pessoas deveriam estar em casa e isolando doentes e idosos? O que fazer com até 5 mil famílias que estarão em situação muito maior de insegurança habitacional sem o Auxílio Aluguel, que já as colocou anteriormente em situação difícil de sustentar valores de locação maiores do que elas podiam arcar? Depois de retirá-las da sua moradia, retirar sua possibilidade de viabilizar um teto não nos parece razoável.

É importante chamar a atenção para o fato de que, nessas situações, nem mesmo uma medida judicial que suspendesse temporariamente os despejos (como está sendo adotado em outros países e proposta entre nós), ou os importantes alertas que estão sendo feitos sobre o tema, resolveriam o problema destas famílias, já que estas estão submetidas a alugueis com contrato de gaveta, em moradias em grande parte com problemas de propriedade. Elas não têm acesso a nenhuma seguridade locatícia por parte da justiça. Nestas áreas, quem faz despejos por não pagamento de aluguel não é o poder judiciário, mas as forças de controle local, de violência muitas vezes desproporcional. A população fica entre a remoção violenta de áreas ocupadas com o uso da força pela Polícia Militar, ou o despejo violento do aluguel de gaveta pelas forças paralelas.

Gostaria ainda de chamar a atenção para o recadastramento do Auxílio Aluguel em si. A evidência da sua importância é clara, pois é o único momento em que o poder público toma conhecimento da situação das famílias beneficiárias – já que não é prevista nenhuma vistoria nas casas alugadas com o recurso público. No entanto, embora isso devesse ocorrer de maneira sistemática, foram raros os momentos em que a Prefeitura as convocou. A comunicação entre ela e as famílias é muito falha e depende constantemente de intermediários – lideranças comunitárias na maioria das vezes, que passam a ocupar o papel do Estado. A falta de metodologia no recadastramento, na verdade, expressa o caráter de fundo do programa de atendimento: não interessa ao poder público saber ou controlar qual é a solução de moradia que estas pessoas encontraram.

E quando interessa? Quando o número de benefícios chega às 27 mil concessões mensais (patamar aleatório que esta gestão se planeja a não passar) e a Prefeitura quer continuar removendo – principalmente por conta do lançamento da PPP Casa da Família. Precisando dar mais rotatividade ao atendimento, faz ações descabidas, como a de cortar benefícios de maneira truculenta, como ocorreu no ano passado, sem respeitar os ditames legais ou a mera razoabilidade. Tendo sido impedida pela justiça de fazer isso em agosto, em outubro abre o recadastramento total do programa, esperando que os desavisados aliviem seu cadastro. Observamos isso em campo: em janeiro, perguntando para muitos beneficiários, tendo comor resposta que eles não sabiam que era necessário se recadastrar, nem onde poderiam fazer isso, nem o que levar. Assim, vemos que é funcional para a Prefeitura manter a falta de acompanhamento dos beneficiários.

Um dado importante nesse aspecto é que das mais de 10 mil concessões de Auxílio Aluguel encerradas desde 2013 (segundo dados da própria prefeitura), 56% não foram por conta de atendimento definitivo, mas por outros fatores. Assim, percebemos que o instrumento não tem como objetivo a solução habitacional adequada e é falho na priorização das famílias no atendimento definitivo, já que as deixa mais da metade das vezes sem nada, no meio do caminho, como está prestes a fazer agora.

Desta maneira, nos somamos mais uma vez às recomendações da Defensoria Pública de que a Sehab não dê prosseguimento ao corte do Auxílio Aluguel às famílias que não compareceram ao recadastramento, dando-lhes prazo após a quarentena para que o façam. Não é razoável exigir presença física das pessoas nos postos de atendimento nesta situação de pandemia e, pior ainda, dificultar a possibilidade de permanecerem em suas casas durante nesse período.

* Pós-doutoranda na FAU-USP, pesquisadora do LabCidade.