Aluízio Marino, Laura Salatino, Kelseny Medeiros, Caroline Brisola, José Vicente de Oliveira Kaspreski, Aline Sayuri Cawamura, Guilherme Eufrasio Pinheiro, Verônica Brito Sepúlveda Martines*
A pandemia ampliou a crise habitacional existente, levando mais pessoas para às ruas. Infelizmente não sabemos quantos vivem atualmente nessa situação, já que os dados do último Censo realizado em 2019, período anterior a pandemia, já estão defasados e a nova pesquisa realizada no fim do ano passado ainda não foi divulgada pela prefeitura. Essa invisibilidade não nos permite compreender o real impacto da pandemia e quantas pessoas passaram a morar nas ruas nesse período, tampouco sabemos ao certo qual a parcela dessa população que foi infectada ou foi a óbito por conta da COVID-19.
No Município de São Paulo, organizações da sociedade civil e movimentos sociais que atuam pela garantia de direitos à população em situação de rua buscaram acessar essas informações durante toda a pandemia. A Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama, por exemplo, realizou 22 pedidos de acesso à informação para a Prefeitura. Entretanto, não obteve informações consistentes: segundo as respostas da municipalidade, a ausência de um procedimento específico para o registro dessa população impediria a contabilização exata, não havendo “informações confiáveis sobre o tema”.
No Comitê PopRua, houve uma cobrança ativa dos membros eleitos para a divulgação periódica de dados sobre óbitos, contágio e, posteriormente, vacinação na população em situação de rua. Em resposta, a Secretaria Municipal de Saúde tratava da dificuldade em conseguir essas informações, alegando novamente a falta de padronização dos formulários de notificação de doenças respiratórias (incluindo a COVID-19), especialmente de um campo para notificação da situação de rua. A solução apresentada pela prefeitura foi utilizar os dados informados pelo Consultório na Rua – política da atenção básica em saúde a partir da busca ativa à população em situação de rua. Entretanto, esses números são obtidos apenas a partir dos atendimentos realizados pelo consultório na rua (um total de 352.950 abordagens no período entre abril de 2020 e outubro de 2021) e não do universo total de atendimentos em saúde realizados com a população em situação de rua em toda a rede municipal. Portanto, embora de suma importância, são dados subestimados. O último boletim, divulgado em novembro de 2021, apontava 953 casos confirmados e 49 óbitos por COVID-19.
Na tentativa de dar maior visibilidade ao que de fato vem acontecendo, as equipes do LabCidade e da Clínica Luiz Gama analisaram uma base de dados inédita sobre os óbitos por COVID-19 na cidade de São Paulo, organizada pelo Projeto Recovida, que realizou uma reavaliação da mortalidade por causas naturais durante a pandemia no período de março de 2020 a maio de 2021. Identificamos pelo menos 96 óbitos da população em situação de rua, quase o dobro dos identificados pelo Consultório na Rua. Mesmo que desatualizados, já demonstram que o impacto foi maior do que foi apresentado pelos dados oficiais. O gráfico abaixo compara os números informados pela Prefeitura via Comitê PopRua e os observados por este grupo de pesquisadores através da base de dados obtidos pelo Projeto Recovida.
O processo para identificação dos óbitos por COVID-19 na população de rua exigiu um enorme esforço, considerando que não há um procedimento específico que identifique essa população, tanto nos óbitos como nas internações por COVID-19 e outras doenças respiratórias. Para encontrar esses registros dependemos, por um lado, de informações inseridas de forma espontânea pelos profissionais de saúde responsáveis: localizamos 35 óbitos em que, no campo de endereço (nome do logradouro e complemento), constava a indicação “morador de rua”; “situação de rua” e “morador de área livre”. Também conseguimos identificar mais 61 óbitos a partir do cruzamento com endereços de centros de acolhimento vinculados à Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS).
Os dados do Recovida, além de indicarem um número maior de óbitos, possibilitaram uma análise mais aprofundada do perfil dessa população que pode ser dividida em dois grupos que possuem diferenças importantes: (i) “situação de calçada”, com 35 óbitos; e (ii) “acolhidos”, com 61 óbitos. Todavia, não é possível concluir que houveram mais óbitos de pessoas acolhidas, já que a identificação daqueles em situação de calçada dependem da boa vontade dos servidores no preenchimento das fichas médicas.
A maior parte dos óbitos identificados são de homens (77,08%), e essa porcentagem é ainda maior quando analisamos apenas a categoria “situação de calçada” (94,29%). Todos os óbitos identificados são de adultos e idosos, 78,13% deles acima dos 50 anos de idade.
Quanto à raça, exatamente a metade das pessoas que vieram a óbito foram identificadas pelos profissionais responsáveis pelo preenchimento dos formulários como pretos ou pardos, 44,79% foram identificados como brancos, 5,21% tiveram a cor da pele ignorada no preenchimento. Se considerarmos apenas a categoria “situação de calçada”, a presença de negros é maior (54,29%).
Sobre o nível de escolaridade, 6,19% nunca estudou, 35,05% tem o ensino fundamental, 9,28% cursou o ensino médio e 4,12% fez curso superior, mas para 45,36% esse campo foi ignorado.
A prevalência de comorbidades e fatores de risco se apresenta como um elemento importante, visto que pelo menos 75% apresentavam ao menos uma condição debilitante. Dentre esses, 27,08% possuíam alguma doença cardiovascular, 17,71% tinham problemas respiratórios e 12,5% eram fumantes. Ao analisarmos somente o grupo “situação de calçada”, 17,14% possuía tuberculose e 25,71% tinha alguma dependência de álcool e/ou drogas.
As características e condições apresentadas refletem, em certa medida, os dados censitários dessa população: em sua maioria homens, negros e com baixa escolaridade. A presença de comorbidades aparece em maior proporção do que nos dados censitários, mas seguindo as vulnerabilidades conhecidas para Covid-19. O perfil etário também segue o perfil de vulnerabilidade da doença com relação a idosos, questão sensível para a população de rua, já que o último censo aponta que a taxa de crescimento para esse segmento foi superior do que a taxa de crescimento geral dessa população.
Às diferenças entre acolhidos e pessoas em situação de calçada reforçam a ideia de que os não-acolhidos apresentam maior sobreposição de vulnerabilidades e maior invisibilidade no processo de produção de dados de saúde.
A maioria dos óbitos aconteceu em hospitais (94,85%), um local de óbito foi registrado como domicílio (centro de acolhida) e nenhum na via pública. Dos óbitos em hospital, 27,08% ocorreram na Santa Casa, nesse mesmo hospital estão registrados mais da metade dos óbitos identificados como “situação de calçada” (57,14%). A concentração de óbitos nessa unidade se relaciona com a grande presença de população em situação de rua no entorno, segundo dados mais recentes do Censo da População em Situação de Rua (2019), 21,2% se concentra no distrito de Santa Cecília. Também sinaliza para uma possível maior sensibilidade dos profissionais de saúde dessa instituição em identificar nos formulários, mesmo que de forma precária, os pacientes em situação de rua.
Durante toda a pandemia não houve uma política pública de acolhida da população de rua que garantisse boas condições de isolamento e proteção adequadas contra a COVID-19, e isso, de alguma forma, se reflete nos dados. Todos os óbitos aconteceram em centros de acolhida ou, como são popularmente chamados, albergues, modalidade de serviço majoritariamente oferecida pela Prefeitura, através de vagas emergenciais. É importante destacar que não localizamos nenhum óbito de pessoas que viviam em repúblicas, modalidade defendida pelos movimentos como uma das mais adequadas para garantir a autonomia e a superação das condições de vulnerabilidade, além de apresentar maior compatibilidade com as medidas de prevenção contra a COVID-19 e outras doenças respiratórias.
Os números certamente são bem maiores… Sabe-se que os dados obtidos são números subestimados, relativos a apenas 14 meses, e para obtê-los, dependemos da sensibilidade do profissional de saúde no preenchimento das fichas médicas.
Além dos óbitos de pessoas em situação de rua identificados, também localizamos outros que tem potencial para incluir essa população: 216 óbitos que não possuem nenhum registro de endereço e 179 constam nos campos relativos ao endereço a indicação de “Instituição de Longa Permanência para Idosos – ILPI” (165), “Pensão” (11), e “Abrigo” (3). A soma é de 395 óbitos que poderiam ser de pessoas em situação de rua, mas não é possível afirmar com certeza. Para verificar essa informação, seria necessário fazer uma análise cruzada entre os dados do projeto Recovida com outros bancos de dados da SMADS.
A pandemia exacerbou a crise habitacional existente. Em dezembro de 2021 a Rede Nossa São Paulo publicou levantamento que aponta que 88% dos paulistanos entrevistados afirmaram ter a percepção de aumento sensível da população em situação de rua. Não sabemos ao certo quantas pessoas vivem em situação de rua atualmente na capital, já que os dados atualizados do Censo da População em Situação de Rua, realizado em 2021, ainda não foram divulgados. Se a realidade de milhares de pessoas vivendo nas ruas de São Paulo é inegável, também é crescente a necessidade de enfrentamento dessa questão urbana enquanto prioridade da sociedade e do poder público. Os dados apresentados neste texto demonstram que durante dois anos de pandemia não foram adotadas todas as medidas possíveis e disponíveis para entender os impactos do COVID-19 sobre a população em situação de rua. Em outras palavras, que a invisibilidade dos óbitos da população em situação de rua, em certa medida, parece ter sido uma escolha. Procedimentos simples, como a inclusão de uma pergunta nos formulários médicos e registros de óbito que identificassem a condição de moradia, com respostas padronizadas, que contemplassem “situação de rua” e “centros de acolhida/albergues”, entre outras possibilidades importantes para a compreensão mais adequada da difusão espacial da pandemia ou outros futuros surtos epidêmicos, ajudaria a não dependermos da discricionariedade dos operadores do setor público.
A ausência de procedimentos específicos para o monitoramento da saúde da população de rua é uma das facetas da invisibilidade histórica enfrentada por esse público. Por outro lado, a sistematização e divulgação de dados sobre essas pessoas é o primeiro passo para enxergar suas demandas e construir soluções que respondam a essas questões. Portanto, é fundamental que o poder público adote medidas urgentes, primeiramente para dar condições de compreender o que está acontecendo no momento, em que vivemos um novo surto de COVID-19 associado a uma epidemia da influenza, e visando consolidar uma política de acompanhamento permanente da saúde da população em situação de rua.
*Aluízio é pós-doutorando e pesquisador do LabCidade FAU USP; Laura é mestranda em administração pública e governo e coordenadora da Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama; Kelseny é mestranda em planejamento e gestão do território e coordenadora da Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama; Caroline é pesquisadora na Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama e associada do ONDAS; José é graduando em direito e pesquisador na Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama; Aline é graduanda em direito e pesquisadora na Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama; Guilherme é graduando em direito e humanidades, gestor de ONG e pesquisador da Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama; Verônica é graduanda em direito e coordenadora da Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama.
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