Isadora Guerreiro e Aluízio Marino *
Os dados do último Censo da População em Situação de Rua de São Paulo deixaram nítida mais uma faceta do estado de emergência habitacional que a cidade se encontra: em dois anos, houve um aumento de 31% de pessoas morando nas ruas e de 52% entre aqueles que se encontram nas calçadas, não acolhidos. Faremos uma análise mais detalhada dos dados do Censo em um próximo post, mostrando que o problema é, além de grande, bastante complexo e com novas características.
Apesar desta complexidade, vimos que a resposta da Prefeitura de São Paulo foi bastante limitada e feita por uma secretaria que não é nem a da assistência social, nem a de habitação. Pouco depois da divulgação dos resultados do censo, foram realizadas duas consultas públicas pela Secretaria Executiva de Desestatização e Parcerias, nos últimos dias 26 e 27 de janeiro, que discutiram sobre Parcerias Público-Privadas (PPP) direcionadas para este público. A proposta é a construção de infraestrutura habitacional (moradia de aluguel e acolhimento) e de serviços, com unidades individuais e coletivas, já mobiliadas e equipadas. Seria essa a solução frente a emergência habitacional em curso?
Pelo contrário! A Prefeitura de São Paulo resumiu uma política de enorme complexidade e que necessita de múltiplas ações coordenadas em uma única resposta, a mesma que tem sido utilizada para todos os problemas urbanos da cidade e que tem sido transformada em panacéia antes mesmo de apresentar alguma solução real: Parceria Público-Privada (PPP). Lembremos que a PPP Casa da Família (lançada em 2019 e acrescida em 2020 de novos lotes), ainda não teve nenhuma obra iniciada.
Nas concessões administrativas propostas, a Prefeitura entra com terrenos e imóveis e a iniciativa privada se responsabiliza pela construção (ou reforma), pela gestão operacional e predial dos empreendimentos ao longo de 25 anos, podendo com isso se beneficiar de receitas acessórias de fachadas ativas. Serão dois lotes:
- Lote 1: três imóveis na Subprefeitura da Sé, totalizando 318 unidades habitacionais privativas de três tipologias: 12m², 24m² e 36m², respectivamente com 1, 2 e 3 beneficiários. Audiência Pública do Lote 1: https://www.youtube.com/watch?v=jL-6UZ1-97I
- Lote 2: um imóvel no Distrito do Tatuapé, totalizando 1.389 unidades habitacionais privativas de quatro tipologias: as três já previstas no Lote 1, mais uma de 48m² com 4 beneficiários. Além disso, mais 40 unidades em duas tipologias na modalidade de acolhimento: 8 unidades com 150m² (12 a 15 beneficiários) e 32 unidades de 320m² (32 beneficiários), ambas de uso coletivo com serviços assistenciais. Há previsão de equipamentos públicos e áreas de convivência. Audiência Pública do Lote 2: https://www.youtube.com/watch?v=bSlPU5BnO5U
A proposta ainda está em discussão, mas adiantamos as mesmas preocupações já presentes na PPP de Locação Social e no Chamamento Público para locação de imóveis privados lançados em novembro passado pela mesma Secretaria: não há definição sobre a política pública a ser implantada nesses empreendimentos. Portanto, não há clareza sobre o perfil da demanda a ser atendida, nem critérios de seleção, nem se ou quanto cada perfil de beneficiário pagará pela moradia, ou ainda qual a relação de locação específica que se estabelecerá com a SMADS. Não há, inclusive, clareza sobre a relação entre as diversas tipologias de moradia propostas e os programas assistenciais específicos para cada uma delas.
Preocupações adicionais se somam à proposta do Lote 2, colocadas na Audiência Pública: a enorme concentração de unidades habitacionais em um único empreendimento apenas para população em situação de rua pode gerar um processo de guetificação; e a existência, em um mesmo local, de unidades de moradia/locação social e de acolhimento/albergue, que podem trazer grandes desafios para a política de atendimento à população em situação de rua, com possibilidade de gerar conflitos entre os próprios atendidos.
Entendemos que para responder à crise expressa pelo Censo de PopRua não basta apenas criar novas vagas de acolhimento sem refletir acerca de quais tipologias habitacionais são necessárias e qual o trabalho de gerenciamento social que está implicado em cada uma delas. Embora na PPP mencionada aqui haja previsão de moradias via locação social, além de vagas de acolhimento, não há previsão de outras tipologias fundamentais para atender a demanda existente – moradias terapêuticas, por exemplo, que garantem não apenas o lugar para morar, mas uma política de redução de danos e cuidados necessários à pessoas que utilizam drogas e álcool.
Nesta proposta de PPP há uma separação entre a construção dos empreendimentos e sua gestão operacional (a cargo da concessionária) e a gestão social dos beneficiários, que ficará a cargo do poder público. Precisamos discutir se é possível esta separação estrita ao longo da concessão, pois o ambiente físico é fundamental nas políticas de atendimento à população em situação de rua e, portanto, não se trata de uma gestão de empreendimentos habitacionais abstratos. O modelo de PPP, que privilegia o ganho econômico do ator privado, não nos parece a melhor forma de garantir atendimento adequado a cada dia maior população que está vivendo nas ruas, pois esta possui qualidades específicas que não são consideradas em empreendimentos genéricos como as PPPs. Além disso, é necessário que estas parcerias sejam construídas junto com coletivos e organizações da PopRua, de forma a garantir condições de participação e deliberação sobre uma política que integre habitação e cuidado. Em outras palavras, que não separa ambiente físico de gestão social.
Seguimos acompanhando os desdobramentos de mais esta iniciativa da SP Parcerias que, como as anteriores, ainda carece de mais debates em relação às políticas públicas necessárias para a gestão dessas infraestruturas físicas no futuro.
*Isadora é professora na FAU-USP e pesquisadora pós-doutoranda no LabCidade; Aluízio é pós-doutorando na FAU-USP e pesquisador do LabCidade.
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