Por Isadora Guerreiro (*), Raquel Rolnik (**) e Paula Freire Santoro (***)

Foi publicada, em 14 de fevereiro, a Medida Provisória nº1.162 que dispõe sobre o novo Programa Minha Casa, Minha Vida. Ainda é cedo para avaliarmos como será a nova versão do programa, já que as propostas contidas nesta MP ainda são genéricas e, portanto, só saberemos exatamente como serão implementadas quando forem definidas nas regulamentações posteriores.

Ainda assim gostaríamos de comentar rapidamente sobre três questões que já aparecem nesta MP, pretendendo com isso ajudar a subsidiar os debates que acontecerão a partir de agora para sua aprovação e regulamentações posteriores.

Contra o mar de casas

A primeira questão refere-se ao Artigo 13, que responde a muitas críticas sobre a qualidade dos empreendimentos realizados anteriormente no âmbito do programa, sobretudo em relação a sua inserção urbana e monofuncionalidade, ou seja, apenas enormes conjuntos de casas sem nada ao redor. Desde 2014, o programa já procurava incluir equipamentos públicos nos conjuntos, com recursos extraordinários em relação às unidades habitacionais. Na proposta atual, esta possibilidade de inserção de equipamentos públicos e espaços para atividades comerciais nos próprios conjuntos está sendo reafirmada, mas ainda enfrenta dificuldades de implantação.

Para entendermos estas dificuldades, há três discussões que precisam de atenção, estando interligadas: primeiramente quem paga pela construção destas unidades, principalmente as comerciais? E, depois, quem se beneficia do rendimento de seu aluguel? Finalmente, prefeituras resistiam à inclusão de equipamentos na medida em que o programa garantia sua construção, mas não sua manutenção permanente (o que inclui, por exemplo, os salários dos trabalhadores). Este é um tema que vai além do equipamento social, envolvendo inclusive a própria manutenção do condomínio no tempo, tema não equacionado na versão anterior do programa. Além disso, pelo fato de os empreendimentos serem feitos pela iniciativa privada, as prefeituras perdiam a autonomia de decisão sobre a localização e prioridade dos equipamentos públicos que, depois, teriam que manter.

A possibilidade das unidades comerciais e equipamentos terem orçamento próprio, extraordinário em relação ao investimento habitacional, é importante para que seu custo não recaia sobre os beneficiários, como foi a equação adotada para os equipamentos públicos no MCMV 2, quando eles eram financiados à parte e doados para as prefeituras. O perigo neste caso é,  considerando os empreendimentos feitos pela iniciativa privada, se unidades comerciais permanecerem com o promotor privado, sem retorno de benefícios para o condomínio. Esta situação fica ainda mais grave se tratarem-se de terras públicas: empreendedores privados, ou mesmo Entidades, se beneficiariam de forma privada de uma renda gerada em patrimônio público.

A questão, portanto, é como fazer com que tal locação de áreas comerciais (em um programa altamente subsidiado com recursos do orçamento público) não recaiam como benefício privado?

Se, por outro lado, os custos de construção forem contabilizados dentro dos valores unitários máximos das unidades habitacionais, ou seja, se os moradores pagarem por estas unidades dentro do custo de suas unidades residenciais, poderiam ter, depois, o retorno deste benefício no barateamento do custo de manutenção do condomínio. No caso da baixa renda, no entanto, não é razoável que os beneficiários arquem com tal custo de construção, ainda que seja importante para os mesmos o abatimento do custo de manutenção condominial. 

É importante manter, portanto, tal custo de construção dentro do valor do subsídio para a Faixa 1. Seria necessário pensar, por fim, em estratégias para estas áreas comerciais ficarem sob responsabilidade de associação dos próprios moradores, como foi realizado em alguns empreendimentos da modalidade Entidades, para colaborar nos custos condominiais do empreendimento ao longo do tempo.

Inserção de Parcerias Público-Privadas

A segunda novidade que gostaríamos de comentar causa preocupação: a possibilidade de repasses e financiamentos serem realizados por meio de Parcerias Público-Privadas (PPP). A MP não deixa claro para qual faixa de renda este modelo está sendo pensado, o que indica a possibilidade de empreendimentos com “mix” de renda – que é o modelo que está sendo efetivado aqui em São Paulo, e que temos acompanhado.

Tal mix, na verdade, tem legitimado uma equação perversa, na qual é realizada cessão de terrenos públicos aos ganhos das concessionárias, que têm garantia de venda com demanda indicada pelo poder público. Embora indicada, seu cadastramento é todo realizado de forma privada pela concessionária, sem controle público, e o que temos visto é que a baixa renda não consegue acessar ou se manter nas PPPs – que acaba, portanto, sendo acessada apenas pela média renda, que consegue pagar pelo alto valor exigido pelo contrato com a concessionária. Não parece razoável que a destinação de terras públicas deva ser direcionada a estas faixas de renda, que têm, em São Paulo, substituído a população local e suas formas de morar populares.

O LabCidade tem acompanhado a implementação de PPPs habitacionais em São Paulo e constatou que a PPP Casa Paulista, no centro da cidade, removeu centenas de moradores de pensões e cortiços e construiu empreendimentos que atraíram rendas mais altas. Os removidos estão sem acesso à moradia adequada até agora, pois não atendem os critérios que a concessionária exige no momento do contrato.

Desta maneira, usar o formato de PPP para o MCMV significa, na prática, aumentar a atratividade financeira destes empreendimentos para a iniciativa privada, que tem acenado total falta de interesse em aderir ao Faixa 1. A preocupação é se este modelo de contratação de fato atenderá, adequadamente, as famílias de mais baixa renda – ou se é apenas uma forma de transferir terras públicas para a iniciativa privada, atendendo majoritariamente faixas médias de renda.

Neste sentido, precisa ficar mais claro o significado dos “benefícios habitacionais” (Art.13 § 3º) aos quais se refere a MP do MCMV, que justificariam a destinação de imóveis públicos a entidades privadas, com dispensa de autorização legislativa específica. Quantas famílias de baixa renda seriam suficientes para justificar tais “benefícios”? Por quanto tempo de atendimento habitacional? Pois aqui entram também as questões da locação, que trataremos em um próximo post.

Já publicamos muitos posts sobre a questão das PPPs, para quem quiser se aprofundar: sobre seu funcionamento (aqui, aqui, aqui e aqui), sobre sua lógica que envolve remoções (aqui, aqui, aqui, aqui) e sobre as resistências locais a sua implantação (aqui, aqui, aqui, aqui e aqui). Além disso, temos um livro publicado que trata mais profundamente destas questões, mostrando a presença das PPPs em várias cidades do país.

Para além da provisão de novas unidades

O terceiro ponto que gostaríamos de comentar em relação à MP do novo MCMV é a possibilidade da inclusão de locação, melhorias habitacionais ou compra de imóveis usados, além de reforma e regularização fundiária, que já estavam previstas no formato original do programa. Ou seja, o novo programa responde ao consenso em torno do fato de que as necessidades habitacionais do país não são resolvidas apenas com a provisão de novas unidades – que, por sua vez, têm como consequência um aquecimento do mercado imobiliário e uma grande disputa por terras, fatores de impacto para o aumento do custo ao acesso habitacional em geral.

A locação foi (e ainda é) outro tema que perpassou nossas pesquisas nos últimos anos. Já mostramos que o aluguel hoje é responsável por metade do déficit habitacional no país (Ônus Excessivo de Aluguel), e que sua composição é majoritariamente feminina.

Realizamos, inclusive, um grande evento científico exclusivamente sobre a questão do aluguel residencial: o Seminário Internacional Moradia de aluguel na América Latina – Estado, finanças e mercados populares. Ele foi composto por quatro eixos, que tiveram suas apresentações orais comentadas em posts aqui na nossa plataforma: 1. Mercados populares de locação; 2. Políticas públicas de locação; 3. Financeirização da locação residencial; 4. Ativismos ligados à locação residencial.

Não está clara a forma de inserção do aluguel no novo MCMV, apenas por esta MP. No entanto, temos observado no geral três formas de inserção da locação nas políticas públicas: 1. Locação social em parque público; 2. Locação social através de PPP; 3. Locação em parque privado disperso (voucher). Como cada uma destas modalidades poderia aparecer no novo MCMV e quais os cuidados a se tomar em cada uma delas? Vamos desenvolver estas questões em um próximo post, exclusivamente sobre este tema do aluguel. Ele merece, pois, afinal, é responsável pela nova frente de expansão do complexo financeiro-imobiliário, e precisamos entender como se relacionará com o novo MCMV.

* Isadora Guerreiro é arquiteta e urbanista e professora doutora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e coordenadora do LabCidade 

** Raquel Rolnik é arquiteta e urbanista e professora doutora da FAUUSP e coordenadora do LabCidade 

*** Paula Freire Santoro é professora doutora da FAUUSP e coordenadora do LabCidade