Por Larissa Lacerda e Martim Ferraz*
15 de janeiro de 2019, às 6h30, carros e helicópteros da polícia militar começam a sobrevoar a ocupação Colina dos Pinheiros, localizada no km 79 da Rodovia Fernão Dias, nas imediações do Rodoanel, na Zona Norte de São Paulo. A ocupação, que completaria quatro anos em fevereiro, foi removida em uma ação que durou três dias, em função de uma ação de reintegração de posse, colocando mais de quatrocentas famílias nas ruas.
Mais uma vez, o cenário de violações se repete: no primeiro dia, moradores denunciavam a ausência de órgãos públicos que deveriam estar presentes para garantir os direitos das famílias removidas, como os órgãos vinculados à Secretaria Municipal de Assistência Social – SMADS, CREAS e CRAS, e da Secretaria Municipal de Habitação – SEHAB. Por outro lado, chamava atenção o enorme efetivo policial mobilizado, composto por policiais militares, policiais rodoviários federais e bombeiros.
Segundo relato de moradoras, funcionários da SEHAB fizeram o cadastramento de parte das famílias, mas não retornaram para finalizar o processo. Duas conselheiras tutelares eram as únicas agentes do Estado a quem os moradores podiam recorrer. No entanto, por conta de um erro no endereço do ofício destinado ao Conselho Tutelar, a conselheira responsável pela região só foi notificada pela manhã do dia marcado para a ação, o que dificultou seu trabalho de acompanhamento.
Diversos momentos de tensão marcaram o primeiro dia de desocupação, que se encerrou na quinta-feira, dia 17. Ao sinal de qualquer movimentação de moradores, policiais militares se posicionavam com armas de bala de borracha e bombas de gás de efeito moral em mãos, em meio a mulheres, crianças, idosos e pessoas portadoras de necessidades especiais.
A rua de terra que dá acesso à ocupação estava congestionada por caminhões de mudança, carros e caminhonetes amontoados de objetos pessoais que eram retirados das casas, entre muitas dúvidas em relação ao seu destino. De acordo com uma das lideranças da Colina dos Pinheiros, a decisão pela desocupação chegou no dia 9 de janeiro, dando às famílias apenas quatro dias úteis para providenciarem outra moradia.
Enquanto aguardava o caminhão, Joana (nome fictício), de 53 anos, lamentava o investimento feito na casa que estava prestes a ser derrubada. Baiana, ela mora há mais de 20 anos em São Paulo, sempre em casas de aluguel, e trabalhando como cozinheira em empresas de buffet, quando é chamada. Há pouco mais de 1 ano, entrou pela primeira vez em uma ocupação, tentando fugir do aluguel que pesava, cada dia mais, em seu orçamento. Sonhando com a casa própria, Joana fez um empréstimo no banco e investiu todo seu dinheiro, cerca de 50 mil reais, nos dois cômodos em que morava. Contudo, ela considera sua história “linda” perto da maioria das famílias dali, pois conseguiu, ao menos, alugar uma casa em um bairro próximo. A partir dessa experiência, ela sugere uma reflexão: “a sociedade olha pra você como?! Eu ainda não compreendi como eles vêem a classe baixa, parece que você não é gente! Invadiu! Quem faz a sociedade girar é quem mora em ocupação, eles não querem que a gente invada? Faça um programa [habitacional] decente!”
Joana não é a única a estar ali fugindo dos custos do aluguel, ao contrário, essa parece ser a história cada dia mais comum entre as famílias que buscam as ocupações de moradia. São relatos que revelam sobre como os valores de aluguéis começaram a pesar no orçamento familiar, sobretudo em um momento de aumento do desemprego e cortes de políticas e programas sociais.
Também as remoções e os despejos são uma constante na trajetória de algumas dessas famílias. Como nos contou Laura (nome fictício), liderança de uma das ocupações reintegradas no Jardim Flor de Maio, em julho do ano passado, algumas famílias que foram removidas de lá vieram para a Colina dos Pinheiros. Agora, enfrentavam mais uma remoção.
Andando pelas ruas, era possível escutar murmúrios. De um lado, moradores que não tinham para onde ir buscavam lugar em outras ocupações do entorno; do outro lado, policiais militares falavam sobre as próximas ocupações que seriam reintegradas, ilustrando, assim, a reprodução do ciclo remoções-novas ocupações-remoções, que tem impactado o ordenamento urbano e as dinâmicas socioterritoriais na região e na cidade de São Paulo como um todo — conforme temos visto em pesquisa desenvolvida pelo LabCidade.
Esse cenário pode ser lido como resultado da inexistência de uma política habitacional que responda às necessidades diversas da população, uma política que se ancora na produção de unidades habitacionais que só podem ser acessadas via mercado, através da compra, excluindo grande parte das famílias que vivem em ocupações. Mesmo por essa via, a conquista da moradia parece improvável. Para se ter uma ideia: em 2015, o número de famílias inscritas no cadastro da prefeitura para receber uma unidade habitacional era de 165.616 famílias.
Reintegrações de posse e terrenos vazios: e a função social da terra?
Em julho do ano passado, há alguns quilômetros da Colina dos Pinheiros, três ocupações de moradia, localizadas no Jardim Flor de Maio, passaram pelo mesmo processo de reintegração de posse, como já relembrado nesse texto. Após denúncias de alguns moradores que viviam nessas ocupações, voltamos aos terrenos que foram objetos da ação.
Seis meses depois, enquanto o matagal cresce protegido por uma cerca instalada logo após a desocupação dos terrenos, as famílias reivindicam seus direitos em relação às arbitrariedades da proprietária e do processo. Depois que todas as casas já estavam no chão, uma decisão suspendeu a demolição, reconhecendo a fragilidade dos elementos que sustentavam.
Dando continuidade ao ciclo de reprodução remoções-novas ocupações-remoções, as famílias do Jardim Flor de Maio seguem procurando uma alternativa de moradia, entre aluguéis que cabem no orçamento — por vezes, precários — e novas ocupações. Uma política habitacional e urbana excludente, combinada a uma atuação do judiciário que privilegia interesses dos proprietários de terra e ao cenário de precarização da vida dos grupos populares no país, tem resultado no aprofundamento dos conflitos em torno da terra e da moradia em São Paulo.
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