Por Raquel Rolnik*

Depois de dois anos de uma discussão muito intensa e mais de 10 anos de proposições, pressões e lutas por parte de movimentos de moradia, o Congresso Nacional da Espanha aprovou, no último dia 27 de abril, uma “Lei de Moradia”, a primeira desde seu processo de redemocratização.

A tão aguardada legislação traz uma série de novidades. Entre elas, a possibilidade de regulação do aluguel nas chamadas “zonas tensionadas”, como foram definidas as cidades ou bairros onde inquilinos comprometem mais de 30% de sua renda para pagar o aluguel. Também estão estabelecidas a cobrança de impostos sobre áreas residenciais vazias e subutilizadas, uma nova política de produção pública de moradia; e alterações nos procedimentos de despejo, a partir de agora vetado antes de tentativas de acordo entre as partes, com a participação do Estado e das comunidades autônomas.

Tantos avanços atendem a um forte anseio social que cresceu no país em função da crise de moradia que estourou após o grande colapso hipotecário financeiro em 2008. Muita gente se endividou para comprar apartamentos ofertados nos anos de boom da produção imobiliária, na primeira década dos anos 2000. Por várias razões, milhares de mutuários não conseguiram pagá-los, o que levou a um crescimento exponencial de execuções hipotecárias e perda da moradia.

A crise pressionou o mercado de aluguel que, por sua vez, se tornou a nova fronteira do complexo imobiliário-financeiro, provocando uma verdadeira explosão de preços de locação que nada ajudou na crise habitacional, também tensionada sob o efeito de plataformas digitais de aluguel de curta duração, como Airbnb.

Desde a crise das execuções hipotecárias emergiu em várias cidades espanholas um movimento social por moradia, que, com a crise dos aluguéis, se intensificou com a formação de sindicatos de inquilinos. Foram estes movimentos que passaram a propor ao Congresso que interferisse na crise, tanto promovendo a oferta pública de moradia social, como regulando a atuação dos agentes privados que operam sobre este mercado.

A nova lei aprovada, embora não tenha atendido a todas as reivindicações, representa um importante marco na política habitacional espanhola e europeia, na medida em que vai consolidando um novo entendimento sobre a relação estado/privado no campo da moradia, depois de décadas de hegemonia de uma visão que delegou totalmente ao mercado os sistemas de moradia locais.

Ao examinar a trajetória espanhola, guardadas as devidas proporções e diferenças, nos perguntamos se no Brasil, especialmente na cidade de São Paulo, poderíamos viver uma trajetória semelhante, uma espécie de “eu sou você amanhã”.

Esta observação se baseia no notável crescimento dos lançamentos imobiliários residenciais, um verdadeiro boom imobiliário na capital paulista sobretudo a partir de 2010. Como na Espanha, no início dos anos 2000, os últimos anos marcaram a expansão do chamado “segmento econômico”, um setor da população que até então tinha pouco acesso ao crédito imobiliário residencial. Entretanto, no caso de São Paulo, desde 2014 , o que foi aprovado como “Habitação de Interesse Social” em mais de um terço dos casos, foram os chamados microapartamentos, com no máximo 35 metros quadrados.

Esse tipo de construção – microapartamentos e studios muitas vezes associados a serviços –, tem sido comercializada como ativos para investimento, com a perspectiva de que possam ser exploradas posteriormente através do aluguel, inclusive de curta temporada. Novos agentes imobiliário-financeiros têm surgido para atuar especificamente neste mercado, constituindo um fenômeno que já havia sido observado em cidades norte-americanas e europeias: a emergência de “senhorios corporativos”.

Na prática, em São Paulo, estes apartamentos têm os preços por metro quadrado entre os mais caros da cidade, nada têm de Habitação de Interesse Social (HIS) e ainda têm pressionado o preço dos aluguéis. Também é notável o crescimento de moradia por aluguel na cidade, revertendo uma tendência de queda de locação desde os anos 1940. Isso significa que, eventualmente, vamos viver aqui uma tensão grande em função de um aumento com despesas com aluguel, aumento potencial de despejos por essa razão e, portanto, pressões por aqui também por regulação do aluguel no futuro. A ver.

Ouça a íntegra do meu comentário no site do Jornal da USP.

*Raquel Rolnik é arquiteta e urbanista, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e coordenadora do LabCidade