Entrevista com Raquel Rolnik por Stephanie Demirdjian, La Diaria (Uruguai)
Com uma trajetória profissional de décadas dedicadas à avaliação das políticas urbanas e habitacionais em diferentes esferas, a arquiteta e urbanista brasileira Raquel Rolnik é referência fundamental no debate sobre o direito à moradia e à cidade na América Latina e no mundo.
Exerceu cargos públicos, foi integrante de organizações civis, por seis anos atuou como relatora especial para o Direito à Moradia Adequada da Organização das Nações Unidas (ONU) e hoje é professora e pesquisadora da USP e uma das coordenadoras do LabCidade. Em 2015 publicou o livro “Guerra dos Lugares”, no qual analisa o que chama de “financeirização” da habitação, processo que define como a apropriação e controle da produção da cidade pelas finanças globais e a crescente participação do setor financeiro no mercado imobiliário
Em conversa com La Diaria, Raquel analisou as formas que este fenômeno impacta hoje nas cidades e propõe chaves para pensar em moradias “menos mercantilizadas”. Dito de outra forma: pensar na moradia como um direito e não como uma mercadoria.
Quais são os obstáculos que impedem a implementação de políticas de moradia justas, equitativas e que garantam melhores condições de vida das pessoas?
O maior obstáculo que temos hoje é o fato da moradia, ou o espaço construído de forma mais geral, ter se tornado um anel fundamental no processo de valorização do capital financeiro. Na fase mais recente, a partir dos anos 1980 e 1990 – dependendo da experiência específica de cada país – houve uma captura do espaço construído pelas finanças globais, o que chamo de colonização. Em parte, pela existência de um superávit financeiro global muito grande e altamente concentrado – estou falando do superávit de grandes corporações como Apple, Google ou Adidas. Mas também me refiro a fundos soberanos de países investidos no mercado financeiro, fundos de pensão de trabalhadores – na medida em que os sistemas públicos de pensão foram desmantelados e constituíram-se em sistemas financeirizados -, seguradoras e demais agentes financeiros, que encontram no espaço construído uma garantia fundamental para suas operações financeiras.
Essa é a história do espaço construído como garantia, que permite aos agentes financeiros obter ainda mais acesso a capitais para fazer seus investimentos renderem a taxas cada vez mais elevadas. Ou seja, o espaço como uma espécie de passagem para o capital financeiro global. Acompanhou-se a criação de novos instrumentos, como os fundos imobiliários ou a “securitização” das possibilidades de pagamento, que securitizam o espaço construído e o fazem basicamente circular no mercado financeiro. É uma multiplicação do que conhecemos como especulação.
O mercado financeiro é especulativo por natureza, e toda a digitalização e revolução eletrônica permitiu que esses fluxos de capital financeiro entrassem e saíssem muito rapidamente. A remoção de todas as barreiras entre os países permite que essa massa de capital disponível imponha uma competição com as pessoas pelo espaço construído. Nós temos que encontrar onde morar e onde organizar nossas atividades econômicas neste espaço construído, por exemplo, competindo com os sheiks do petróleo ou os fundos de pensão, que usam o espaço como um ativo.
Dediquei um livro inteiro, ”Guerra dos Lugares”, para demonstrar como a financeirização interferiu completamente nas políticas habitacionais e moldou as políticas de tal forma que a habitação se tornou uma nova fronteira na financeirização da aplicação desses capitais. Esse é o maior obstáculo e os estados têm sido muito protagonistas nesse processo, no sentido de abrir suas fronteiras para o complexo financeiro imobiliário.
Como evoluiu esse processo de financeirização da habitação na América Latina?
Na América Latina existem diferenças importantes nas temporalidades e nas formas pelas quais esse movimento é organizado. Historicamente, quando falamos do processo de financeirização na Europa ou nos Estados Unidos, estamos falando do desmantelamento da política habitacional como política social, como parte importante de um estado de bem-estar, rumo à mercantilização da habitação e sua transformação em ativo financeiro. Quando falamos da América Latina, a primeira coisa a dizer é que nunca houve um Estado de bem-estar social em que a habitação foi um componente essencial, porque a maior parte das moradias foi historicamente produzida pelos próprios habitantes e assentados.
Isso não significa que o processo de financeirização não tenha chegado à América Latina. Eu diria que este processo ocorreu em uma primeira versão, na qual o Chile foi o laboratório essencial onde este modelo foi experimentado, que é o modelo de grandes capitais financeiros entrando em construtoras e incorporadoras e produzindo em massa um produto mercantilizado, pelo qual se acessa via crédito imobiliário, mobilizando recursos públicos como subsídio. É um modelo em que o governo subsidia para você comprar um produto que é produzido a partir de um circuito altamente financeirizado, no qual suas morfologias estão sujeitas aos ritmos e às necessidades de remuneração do capital investido nessa produção. E não é por acaso que o Chile de [Augusto] Pinochet foi a primeira experiência de produção em massa de moradias populares nas periferias da cidade, com um produto de péssima qualidade, reproduzido infinitamente, que tem a ver com esses desejos para lucratividade.
No Chile, o resultado disso é um grande problema enfrentado pelas pessoas que vivem hoje nesses complexos, que não são cidades e não têm qualidade urbana. O Brasil, com o programa “Minha Casa, Minha Vida”, também reproduziu o mesmo modelo, com elementos comuns: moradia individual, própria, produzida em série por incorporadoras que abriram capital em bolsa e levantaram capital financeiro global, no qual investiram seu desejo de lucratividade. Esta é a primeira onda de financeirização. É importante apontar agora uma segunda onda, que também vemos nos países desenvolvidos.
Depois da crise financeira das hipotecas, produzida pela financeirização da habitação nesses países e pelo desmantelamento da ideia da habitação como política pública, o que se seguiu ao desastre e ao problema da emergência habitacional é a nova fronteira da financeirização em torno do aluguel. Ou seja, não mais casa própria, mas aluguel, com o surgimento de proprietários corporativos que são exatamente os mesmos que investiram em habitação coletiva na fase anterior e que agora oferecem imóveis para locação em diferentes modalidades. Airbnb e outras plataformas digitais fazem parte de uma lógica semelhante, e agora estamos começando a ver esse fenômeno também na América Latina.
Em Santiago já podemos ver um novo produto imobiliário financeirizado que: a locação oferecida especialmente para imigrantes em áreas centrais da cidade, também com características de submissão de morfologias a essas lógicas de rentabilidade do capital financeiro. Esses eixos de expansão da moradia para locação, mais uma vez, têm o desenho de políticas públicas para abrir essas fronteiras. Isso é algo que começa devagar na América Latina, mas que já conseguimos detectar empiricamente em alguns países.
Que papel cumpre o aluguel nesse processo?
Historicamente, tivemos uma parcela muito pequena do aluguel na moradia. Um dos motivos é que, quando as pessoas falam sobre a casa própria na América Latina, ninguém pergunta se é uma propriedade oficialmente registrada ou não. Assim, por exemplo, no Brasil diz-se que cerca de 85% da população vive em casas próprias, mas mais da metade são ocupações, favelas, autoconstrução, loteamentos irregulares e ilegais, assentamentos etc. Sempre tivemos o aluguel como título de posse, mas em proporções muito pequenas. O que estamos observando agora em diferentes países da América Latina é o aumento da proporção de moradias alugadas. Aí vemos dois fenômenos importantes, que estamos investigando na Universidade de São Paulo. Por um lado, os aluguéis aumentaram nos assentamentos populares auto construídos como parte da consolidação do próprio assentamento popular, com a construção de mais apartamentos para alugar e gerar renda para as famílias.
Isso tem a ver com o esgotamento da possibilidade de formação de novos assentamentos, problemas de escassez de terras e uma série de outras questões, mas também como parte desse processo de consolidação. Se falamos de periferias auto produzidas, que hoje têm 30, 40 ou 50 anos, então elas já estão em processo de consolidação e aí temos uma segunda geração de aluguel informal nos mercados populares.
Também começa a aumentar essa renda corporativa com uma espécie de transformação da habitação em serviços, e aí estamos falando do mundo formal, inferido na produção financeira e bancária, e assim por diante. Por exemplo, novos investimentos no centro de São Paulo ou Santiago, onde você pode alugar um pequeno apartamento, mas ao mesmo tempo você pode alugar serviço de limpeza, uma bicicleta ou o espaço de uma cozinha gourmet – ou seja, novos produtos imobiliários ligados ao aluguel e que pensam na habitação como um serviço. O que se comercializa aí é o tempo de uso, não o espaço.
Finalmente, o que estamos começando a observar também é como as plataformas digitais financeirizadas penetram nos mercados populares. Como o Airbnb nas favelas, por exemplo. São processos que também começam a se conectar na medida em que, para se obter receita de aluguel de um espaço construído, não é necessário que o imóvel seja legalizado. Tudo isso é para olhar prospectivamente, porque acredito que a financeirização da renda é a nova fronteira e que isso vai se expandir até nos mercados populares e informais.
Como você faz da moradia um direito e não uma mercadoria? Existem exemplos de boas práticas que apontam nessa direção?
A questão toda é a desmercadorização: da terra, do solo, do espaço construído. A habitação não pode circular amplamente no mercado. Muitas pessoas consideram a propriedade privada registrada como a forma mais segura de posse que existe, mas, na realidade, a propriedade individual é a forma mais sujeita a ataques de mercado e de circulação. Na verdade, é a forma mais livre de circular, o que não significa necessariamente mais segurança e proteção para as pessoas. Quais são as formas de habitação não comercializadas ou menos comercializadas? Para nós, a experiência de habitação cooperativa no Uruguai é uma grande referência. A habitação cooperativa, em geral, é muito importante. Em algumas cidades vejo uma produção cooperativa significativa, como em Zurique, que tem uma quantidade de moradias cooperativas produzidas desde as décadas de 1920 e 1930, mas continua produzindo. Existem outras experiências cooperativas de pequena escala que também são muito importantes nos Estados Unidos ou na Espanha. Por se tratar de uma forma coletiva e solidária, em que os vínculos entre moradia e pessoas são vínculos complexos, a forma cooperativa torna esses espaços menos abertos a ataques especulativos. Portanto, protege as pessoas em sua localização.
Você acabou de mencionar o Uruguai como exemplo. Que leitura você faz sobre as políticas de habitação neste país?
Acredito que a América Latina se orgulha de ter uma política habitacional de caráter cooperativo, como a promovida pela Fucvam [Federação Uruguaia de Cooperativas de Moradia de Assistência Mútua] há tantas décadas e que sobreviveu a importantes mudanças de governo em diversos níveis, e ainda permanece. É único. Quando eu era Relator Especial da ONU para o Direito à Moradia Adequada e me pediram para dar um exemplo de política pública, sempre dei o exemplo do Uruguai. É um exemplo importante ao nível da persistência, da qualidade da habitação produzida e da capacidade de integração com outras políticas. Por exemplo, a política promovida pelo Uruguai como país e Montevidéu como cidade de ter terras públicas para cooperativas me parece importante, porque no mundo todo o que estão fazendo é oferecer terras públicas de bandeja para parcerias público-privadas que são nada mais do que frentes de expansão do capital financeirizado sobre o patrimônio público.
A moradia é um direito, mas quem paga?
É preciso entender que uma parte da riqueza produzida pela sociedade é captada para um fundo público de apoio àquelas pessoas que, devido à distribuição da riqueza na sociedade, não têm a possibilidade de comprar ou ter acesso a uma casa. Portanto, temos que capturar uma parte do excedente da riqueza coletiva produzida pela sociedade para garantir o direito à moradia àquelas pessoas que não têm os meios, os bens e a renda suficientes para encontrá-la no mercado.
Em 2018, ao apresentar seu livro no Uruguai, você disse que o planejamento urbano tem sido um “instrumento de negação de direitos”. Em que sentido pode implicar uma negação de direitos?
Em primeiro lugar, da colonialidade da definição do modelo de cidade que, ao ser confrontado com as várias formas como as pessoas se organizam na vida, estigmatiza e condena uma parte da produção da cidade e a define como ilegal e irregular. Portanto, é uma ação claramente discriminatória, pois os territórios irregulares e ilegais têm uma atuação discricionária do Estado no que se refere ao direito aos serviços públicos, à infraestrutura e ao direito de pertencer à cidade. A delimitação dessas fronteiras é uma operação de planejamento. É o planejamento que dita as formas permitidas e proibidas de ocupação. A discussão é quem define as formas permitidas e proibidas de ocupação e a partir de qual paradigma. É um paradigma claramente centralizado nas classes médias, nas elites e 100% sujeito a produtos imobiliários.
A segunda dimensão é a linguagem do planejamento, que é produzida pelo setor imobiliário e que trabalha basicamente com produtos imobiliários: a torre corporativa, o bairro residencial exclusivo, o shopping center. Estamos falando de produtos imobiliários que definem as formas como o destino da cidade vai se transformar, em uma linguagem que pouco tem a ver com a linguagem da vida e das pessoas. Uma revisão epistemológica do planejamento deve ser realizada, especialmente na periferia do capitalismo, onde outras formas de fazer a cidade ainda existem e coexistem. Claro, tudo isso é muito marcado por elementos raciais e de gênero: sim, é um planejamento de homens brancos. Portanto, é importante repensar essa cidade e esse modelo, para que o planejamento seja efetivamente um instrumento de ampliação do direito à cidade.
Continuando nessa linha, pode-se dizer que o planejamento urbano e o direito à cidade estão em conflito?
Nesse sentido sim, porque esse modelo hegemônico de planejamento é um jogo em que a maioria das pessoas entra em uma posição muito subalternizada.
No cenário atual, é possível uma reforma urbana que esteja a serviço das necessidades da população?
É importante relembrar a história da luta pela reforma urbana em nossas cidades. No Brasil, foi uma agenda importante desde os anos 70 e na época se assumiu um compromisso muito forte com a reforma do ordenamento jurídico do planejamento urbano para a incorporação do direito à cidade e à moradia. Daí surgiram instrumentos e processos interessantes e, sobretudo, um movimento social em torno dessa luta pela cidade. Mas o que é importante levar em conta é a armadilha em que nos metemos, pois o campo onde se definiu o ataque ao direito à cidade é o do urbanismo, uma frente já muito capturada por uma lógica imobiliária hoje financeirizada. Também temos que levar em conta o quanto o urbanismo neoliberal avançou nas últimas décadas, também como um processo global, trabalhando em um marco de abertura de projetos específicos de transformação urbana produzidos a partir de parcerias público-privadas (PPP), e o quanto isso também capturou a lógica do planejamento. Tudo isso para dizer que hoje, mais do que nunca, temos muitas lutas pela cidade e que devemos renovar o léxico e a agenda da reforma urbana. É hora de repensar as estratégias, o modelo de planejamento e o espaço de discussão, além de integrar outras agendas.
Publicado originalmente em La Diaria, 29/7/2021. Tradução e adaptação: Leonardo Foletto.
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