Por Paula Freire Santoro, Deiny Façanha Costa e Pedro Rezende Mendonça*

Na última sexta-feira, 13 de janeiro, a Prefeitura de São Paulo lançou para uma consulta pública virtual a minuta de lei da Revisão Intermediária do Plano Diretor Estratégico (PDE) de 2014. Um dia antes, já circulavam matérias comentando sobre o aumento de vagas em novos empreendimentos ao longo das Zonas de Estruturação Urbana (ZEUs), mostrando que o município quer facilitar vagas de garagem em prédios próximos a metrô e corredor de ônibus como forma de frear o ‘boom’ de microapartamentos na cidade. Será que o poder público quer frear ou responder ao mercado imobiliário que avalia que a produção de studios já apontava uma saturação? Seria para restringir vagas de garagens dos studios (vários deles hoje não possuem) ou para permitir mais garagens em apartamentos maiores?

O tema das garagens tem sido muito debatido nas últimas décadas. São Paulo dos anos 1990 estimulava a construção de garagens em lotes privados através da isenção da cobrança de Outorga Onerosa do Direito de Construir (OODC) para áreas cobertas de estacionamento, e da permissão que a área construída com este estímulo fosse igual ao coeficiente de aproveitamento (Lei 14.044/2005), permitindo duplicar a área construída total.

No caso de empreendimentos considerados como polos geradores de tráfego –aqueles que atraem tráfego de pessoas–, a Prefeitura obrigava que o privado oferecesse muitas garagens, mesmo se estivesse numa região bem servida por transporte público. O tema apareceu no debate, por exemplo, com a construção do Instituto Moreira Salles na Avenida Paulista, onde há uma rica oferta de transporte coletivo, para o qual foi exigido um número grande de vagas, fazendo com que fossem necessários vários andares de estacionamento que encareceram a construção do edifício. 

Sem falar no estacionamento gratuito em área pública, um dos maiores estímulos que a administração municipal oferece historicamente aos carros. É um espaço público que deveria ser de uso coletivo, mas é apropriado em benefício de um bem privado, gerando externalidades negativas para sociedade com a concessão de espaço público sem compensação financeira e a ociosidade de um espaço que poderia atender a outras necessidades urbanas, como área de infiltração, ampliação de calçada e infraestrutura cicloviária e pontos de ônibus.

Presidente da Comissão Técnica de Meio Ambiente da Associação Nacional de Transportes Públicos, o sociólogo e engenheiro Eduardo Vasconcellos nos contou certa vez que fizeram a conta e apenas 15% dos carros da frota paulistana estariam na rua na hora dos congestionamentos, os outros 85% estaria estacionado dentro dos lotes, consumindo muita área privada, que poderia servir para outro uso. Além disso, uma garagem para carro tem cerca de 25 m², às vezes maiores que os microapartamentos que vêm sendo produzidos pelo mercado na cidade. 

Legislação anterior ao PDE 2014, o Zoneamento de 2004 previa que toda unidade habitacional deveria ter no mínimo uma vaga de garagem, sendo possível mais vagas para unidades maiores de 200 m² e com exigência maior para usos não residenciais de no mínimo uma vaga a cada 35 m² de área construída computável. 

 

Figura 1. Figuras explicando a regra em vigor antes do PDE 2014 apresentadas no processo participativo. HU = unidade habitacional. Fonte: Gestão Urbana, 2023.

 

A proposta do PDE em 2014 era justamente mudar esta lógica, começando com a redução dos estímulos a se construir garagens, especialmente nos Eixos de Estruturação da Transformação Urbana, que são áreas providas com o sistema de transporte coletivo de média e alta capacidade, ou seja, no entorno de corredores de ônibus, estações de metrô e trem. 

Os Eixos do PDE 2014 (marcados em áreas em azul claro nos mapas que seguem) reduziram a metragem de área computável para o cálculo de outorga onerosa aprovada como garagens. Os descontos do pagamento de OODC foram reduzidos para uma vaga por unidade habitacional em usos residenciais (R) e uma vaga a cada 70 m² de área construída computável para usos não residenciais (nR). Quando os Eixos se consolidam como Zonas de Estruturação Urbana (ZEUs) na Lei de Parcelamento Uso e Ocupação do Solo (LPUOS) de 2016 mudam a regra, permitindo descontos na OODC proporcionais às áreas dos apartamentos e, apesar de fixar um limite de cota de garagem máxima de 32 m² para usos residencial e não residencial, cria-se um período de transição da regra, que duraria 3 anos (terminando em 2019), com maior permissividade de vagas por metro quadrado de área computável aprovada nesta transição, permitindo uma vaga a cada 30m² de área construída para uso residencial e a cada 60m² para uso não residencial. 

Outra estratégia do PDE 2014 foi a criação de condições para implantação de edifícios-garagem nos nós intermodais nos extremos dos sistema de transporte coletivo para que ocorra a migração modal e o carro seja usado onde é baixa a oferta do sistema, de forma complementar. 

O PDE 2014 e a LPUOS 2016 acabaram desestimulando a mobilidade por veículos individuais se comparado à legislação anterior, mas não restringiram o uso do carro nas áreas bem servidas de serviços de transporte público, apenas diminuíram o estímulo à construção de garagens

O mercado se adaptou à legislação, através de várias combinações no processo de aprovação. Vimos que produziu studios sem vagas de garagem  e unidades maiores com 2 ou mais vagas de garagem no mesmo empreendimento, chegando até 4 vagas, inclusive nos eixos. Vimos também que produziu unidades não residenciais com garagens, que foram vendidas para proprietários de unidades residenciais. 

A cartografia dos empreendimentos imobiliários lançados antes e após 2014 mostrou que as garagens, então, seguiram sendo construídas. Vimos que houve uma ampliação no número de empreendimentos sem garagens (ver empreendimentos sem garagem em amarelo nos mapas 1 e 2 que seguem), ao mesmo tempo que essas seguiram sendo construídas nos eixos..

Mapa 1. Presença de garagens em novos empreendimentos lançados entre 2006-2013. Fonte: LabCidade, 2022. Elaboração: Henrique Canan e Paula Victória de Souza.

 

Mapa 2. Presença de garagens em novos empreendimentos lançados entre 2014-2019. Fonte: LabCidade, 2022. Elaboração: Henrique Canan e Paula Victória de Souza.

Também verificamos empreendimentos com 2 a 3 garagens (em verde) e com mais de 4 garagens (em azul) dentro dos eixos e nas suas bordas, mostrando que houve muita produção de garagem, mesmo com a diminuição do estímulo.

Mapa 3. Número de garagens em novos empreendimentos lançados entre 2014-2019 e as Zonas de Estruturação Urbana. Fonte: LabCidade, 2022. Elaboração: Henrique Canan e Paula Victória de Souza.

Mas o mercado quer mais! Agora a minuta da revisão retrocede ao propor o aumento das vagas de garagem nos eixos como justificativa para contenção da produção de studios que, como já comentamos, sinalizava para um descompasso entre a oferta e a demanda para venda e locação de studios e apartamentos compactos na cidade de São Paulo (levantamento Zap+ 2022).

A lógica já em curso no mercado de empreendimentos com studios sem vagas e apartamentos maiores com mais de uma vaga se manterá, a diferença é que a metragem dos studios aumentará para ter como contraponto mais vagas de garagem contabilizadas como área não computável. De fato, oferece um bônus para a produção de apartamentos maiores, que podem ter mais vagas consideradas como área não computável. A nova regra não lida com o problema de uma grande produção de microapartamentos através de restrição, mas sim a partir de um incentivo que prejudicará a mobilidade urbana na cidade e manterá a segregação socioespacial.

Variação genérica do limite de número de vagas por área computável média das unidades residenciais. Fonte: LabCidade, 2023.

A produção de microapartamentos está sendo comercializada principalmente para investidores e concentrada em Eixos em regiões já valorizadas –como nas avenidas Rebouças e Consolação, entre outras–, com preço alto por metro quadrado da unidade. A produção dos mesmos com vagas manterá a dificuldade de acesso a estas unidades caras pelos mais pobres e o modelo de apartamentos de 75 a 90 m², tão comercializados nessas áreas valorizadas, continuará. 

A minuta de projeto de lei proposta parece perpetuar o modelo rodoviarista e vai na contramão de outros planos, não apenas do PDE 2014, como o Plano de Mobilidade Urbana 2015 e o Plano de Ação Climática 2020 que possuem como diretrizes a redução do uso do automóvel, incentivo ao transporte coletivo e modos ativos, e redução das emissões de gases de efeito estufa vindo do transporte que é a principal fonte de emissão nas cidades. Perpetuar o modelo rodoviarista resulta na piora da qualidade do ar, aumento dos problemas respiratórios; piores condições de mobilidade, já que quanto mais carros circulando, maior a sobrecarga no sistema viário. As mortes no trânsito foram de 308 pessoas por ano vítimas de atropelamento em 2020, a poluição atmosférica é mais fatal que o trânsito e projeções apontam que 50 mil pessoas por ano no Brasil morrem pela má qualidade do ar.

 

* Paula Freire Santoro é professora na FAUUSP e coordenadora do LabCidade; Deiny Façanha Costa é mestranda em Planejamento Urbano e Regional pela FAUUSP; Pedro Rezende é pesquisador do LabCidade.