Foto: Marina Pereira

Por Marina Pereira, Nathalie Prado, Leonardo Foletto e Paula Santoro*

Se você circula pela zona oeste de São Paulo já deve ter visto estas cenas nos últimos meses: patinetes elétricos circulando em alta velocidade numa ciclovia lado a lado (ou quase) com ciclistas; bicicletas estacionadas no meio de uma calçada, no lugar onde somente pedestre costuma passar, ou em outros locais mais improváveis, como canteiros centrais, não raro impedindo a passagem em guias rebaixadas ou bloqueando rampas acessíveis. São tantas as situações que foi criada conta no Twitter com as mais variadas imagens dessas ocorrências pelo mundo, em especial nos Estados Unidos.

Associados à ideia de veículos leves alimentados por baterias que causem menos impacto ao trânsito e ao meio ambiente, esses equipamentos foram criados para cumprir um papel nos deslocamentos de curta distância, em escalas que geralmente não excedem três quilômetros, complementando trajetos feitos por ônibus, trens e metrôs. Eles acabam por trazer uma nova configuração sobre a dinâmica de deslocamentos pela cidade, no que alguns chamam de “micromobilidade”. E criam, também, um novo conflito, ao disputar o espaço que seria destinado aos pedestres.

Em São Paulo, o sistema de patinetes e bicicletas dockless (que não têm um lugar específico para o estacionamento) começou discretamente em agosto de 2018. Informações publicadas na imprensa apontam que já são 11 operadoras, concentradas na zona oeste da cidade, em grande parte na área conhecida como “centro financeiro”, região compreendida pelos bairros da Vila Leopoldina, Vila Madalena, Pinheiros, Jardins, Itaim Bibi, Vila Olímpia, Butantã e a Cidade Universitária. Como se vê, a implantação já começou em um espaço segregado da cidade, ocupado por população de mais alta renda, um público que pode pagar pelos serviços ofertados, não para quem precisa de alternativas para a micromobilidade. Mas como já falamos em um post anterior sobre as estratégias de mobilidade territorializadas de acordo com o interesse das empresas, aqui gostaríamos de falar sobre a invasão do espaço público pelos veículos dockless. Acreditamos que São Paulo precisa de alternativas de micromobilidade e mobilidade ativa, mas a forma como as opções têm sido implementadas têm se mostrado desatenta às possibilidades de acidentes. Estas opções precisam urgentemente ser regulamentadas e geridas de acordo com o interesse dos cidadãos, e não das empresas.

Bicicleta da Yellow estacionada na calçada da Cidade Universitária. Foto: Marina Pereira
Aŕea de atuação em SP da Yellow, uma das empresas do ramo

Expansão veloz e problemas

Os patinetes elétricos e bicicletas sem estações fixas tem se espalhado rapidamente por países das Américas e da Europa. No final do ano passado, uma empresa anunciou que, sobre os países em que opera, 30% dos seus passageiros haviam substituído o carro pela e-scooter. Os números de usuários impressionam: até final do ano passado, Los Angeles (EUA) registrou um total de 430 mil usuários, Paris 315 mil, e Lisboa 53 mil. No Brasil, implantados desde o fim de 2018, os patinetes e bicicletas já estão operando em diversas capitais, como Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Porto Alegre.

Esta expansão não se deu sem questões sobre como ocupar e regular o espaço público para a micromobilidade. Em pouco mais de um ano, a cidade de São Francisco, nos Estados Unidos, teve suas calçadas invadidas, sem autorização prévia, pelos patinetes elétricos (chamados de e-scooters). Poucos meses depois estavam proibidos pela prefeitura, que solicitou às empresas responsáveis pelos veículos, quais suas estratégias para manter calçadas livres e a segurança dos usuários. Seguem proibidos por lá enquanto não se tem uma regulação específica.

As empresas dizem que tem buscado alternativas para que usuários tenham espaços mais seguros para usar o veículo. Uma empresa de Los Angeles anunciou, por exemplo, que que pretende criar um conselho e um fundo para melhorar a infraestrutura de trânsito para ciclistas e pedestres, sem deixar claro que medidas efetivas tomará para efetivar a proposta.

Se assiste a uma disputa pelo espaço público, para ser utilizado por empresas que cobram pelo uso de seus veículos, mas que não participam da construção, gestão ou mesmo da regulação destes espaços, o que em geral é feito pelas prefeituras.

Patinetes da Grin estacionados na calçada. Foto: Marina Pereira

Regulamentação

Em teoria, no Brasil o uso de bicicletas nas calçadas é proibido por lei, sendo permitido somente em casos que o ciclista esteja empurrando o equipamento, ou em locais autorizados e com a devida sinalização. Já no caso dos patinetes, seu uso é permitido em áreas de pedestres, desde que dentro do limite de 6 km/h. Para velocidades maiores, respeitado o limite máximo de 20km/h, deve-se utilizar a ciclovia ou ciclofaixas, mas o que se vê na prática é bem diferente do que as leis e regras definem. Ainda, as empresas podem operar estacionamentos de bicicletas compartilhadas em áreas públicas, desde que aprovado pela Prefeitura e pagando por isso (em uma concessão onerosa). Bicicletas sem estação devem ser estacionadas “sem prejuízo da livre circulação de pedestres”.

Para além do limite de velocidade, a presença dos patinetes elétricos ainda acontece sem regulamentação e fiscalização para seu uso no espaço público urbano, seja para as empresas ou para os usuários. Aberto à considerações, o Projeto de Lei 01/2019 que circula na Câmara Municipal de São Paulo cria um Sistema de Micromobilidade Compartilhada (SMC) e traz diretrizes que visam estimular o desenvolvimento de uma Rede Integrada de Micromobilidade (RIM), o que estabelece ao poder público a responsabilidade de fiscalização frente às operadoras – como as adequações e tecnologias possíveis para uma fiscalização eficiente sobre o como e onde devem ser “estacionados” os patinetes elétricos e bicicletas sem estações. Ainda muito inicial, traz diretrizes que servirão de base para que o poder público detalhar as regras para a operação dos serviços. Parece principalmente procurar dar segurança jurídica para as empresas operarem e permitir futuras parcerias público-privadas, o que abriria espaço para novos investimentos em mobilidade na cidade pelas empresas através de patrocínios que podem conter propaganda nos espaços desta Rede.

A capital paulista já conta com um decreto, de 2017, que traz diretrizes e estipula regras sobre o compartilhamento de bicicletas em vias e logradouros públicos. Dentre as diretrizes para o sistema de bicicletas compartilhadas está a integração com demais redes de transporte especialmente o transporte coletivo de passageiros e com a rede cicloviária, além da expansão da operação de forma que atenda todas as regiões da cidade.

As duas principais empresas que operam na cidade hoje, Grin e Yellow, têm mantido estações e pontos para estacionamento de seus equipamentos nas calçadas a partir de parcerias com comércios e bancas de jornal. Uma delas, por exemplo, criou postos e estações implementados em parceria com estabelecimentos e coloca como contrapartida a visibilidade que o estabelecimento ganhará. Na prática, de acordo com a empresa, as áreas comerciais que adotaram a ideia já mostram uma melhora no fluxo de pessoas e clientes.

Mas não podemos deixar de ressaltar que estas iniciativas apontam, como tantas outras, para a privatização do espaço público e destinação de espaços ainda menores do que os existentes, para os cidadãos circularem. Além disso, parecem ser ocupações de calçadas não regulamentadas, pois, para funcionar de maneira adequada, no mínimo, precisam de um Termo de Permissão ou Concessão de Uso. Por conta desta situação ainda não regulada, a prefeitura e as empresas têm proposto outros pontos de devolução e retirada dos patinetes e bicicletas: além das bancas de jornais, incluem abrigos de ônibus, vagas de Zona Azul, entre outros. No entanto para o uso destes espaços também é necessário um termo de permissão ou concessão. E estes termos foram firmados? Com qual conteúdo?

Além das estações uma empresa negocia com pessoas físicas (usuários ou não usuários) um outro tipo de serviço: criou uma “comunidade de carregadores”, formada por “colaboradores” que retiram os patinetes do espaço público durante a noite, recarregam e os devolvem com no mínimo 90% da bateria até as 7 da manhã (foto abaixo). O serviço gerou uma verdadeira “caça aos patinetes e durante a noite é possível ver diversos carros carregados dos equipamentos em troca de uma pequena remuneração. Sem gerar nenhum tipo de vínculo empregatício, sem aumentar/melhorar a frota de carregadores empregados, consiste em uma “terceirização informal” do serviço prestado que parece uma nova forma de precarização do trabalho.

Carregadores de patinetes à noite.Foto: Marina Pereira


Novas frentes

Não há dúvida que há um grande potencial dos veículos dockless nos curtos deslocamentos – como integração a outros modais – sendo eles uma nova forma de experiência da cidade, que pode trazer grandes contribuição para o trânsito local. Mas ao mesmo tempo não podem servir de pretexto para que as empresas do ramo permitam ocupar áreas públicas indiscriminadamente, disputadas por outras formas de circulação, de forma não-onerosa, como é o caso das calçadas, podendo inclusive ampliar o número de acidentes.

Falta regulação da atividade e do uso do espaço público, e também, uma avaliação das condições do espaço físico público disponibilizado para circular ou estacionar os patinetes. As calçadas não parecem ser este lugar – são estreitas, insuficientes, precárias, se considerarmos apenas a circulação de pedestre. A pergunta que fica é: será que o leito das vias públicas desta cidade de carros seriam disponibilizados para esta circulação?

Tampouco os usuários possuem orientações sobre como conduzir, se deve usar capacete, ou onde e como estacionar. Em algumas cidades dos Estados Unidos, por exemplo, os patinetes só podem ser conduzidos por pessoas com capacete e cadastradas, apresentando idade mínima e carteira de motorista. Ao tirarem a carteira, estes obrigatoriamente assistem aulas sobre as regras de trânsito para os diversos modais, inclusive os patinetes. Nesta discussão sobre a disputa de espaço pelos modais, mais do que cursos para tirar licença para dirigir, seria importante que todos os cidadãos fossem educados sobre o desafio de compartilharmos o espaço.

A responsabilização das empresas também não está clara: se ocorre um acidente porque o equipamento não teve manutenção, se o usuário não estacionou onde devia, se aconteceu no espaço público, entre outros, como será esta responsabilização e quem será responsabilizado?

É o município que regula o espaço público, e este não tem regulado de forma a prevenir os conflitos e acidentes. E ainda, as decisões tomadas até agora mostram que o espaço do pedestre segue em segundo plano nas decisões tomadas. O momento parece ideal para que se inicie uma real adequação das calçadas, ciclovias e, principalmente, das vias para carros, que certamente possuem mais espaço que poderia ser transformado em áreas para a micromobilidade e mobilidade ativa na metrópole.

* Respectivamente, mestranda e pesquisadora de mobilidade a pé, cidade, gênero e interseccionalidade na FAUUSP; mestranda em Planejamento Urbano pela FAU-USP com foco em mobilidade a pé e gênero, atua na organização social Cidade Ativa e faz parte do Projeto Como Anda; jornalista, coordenador de comunicação do LabCidade; urbanista, professora da FAU-USP e coordenadora do LabCidade;