Larissa Lacerda, Débora Ungaretti, Fernanda Accioly Moreira, Guilherme Lobo Ferraz Pecoral, Julia Terron e Raquel Rolnik*
Este texto faz parte de uma série de publicações em nosso site com os artigos da equipe do LabCidade e parceiros no congresso Fórum SP 21: Plano Diretor e Política Urbana de São Paulo, realizado de maneira virtual entre os dias 21 e 30 de setembro de 2021. Os textos enviados ao evento foram levemente alterados para estar aqui em uma versão mais enxuta.
Um dos efeitos da crise econômica e social no contexto da pandemia de covid-19 tem sido o aumento da insegurança habitacional, com a perda da renda de grande parte das famílias brasileiras. Em São Paulo, logo no início da crise sanitária, passou a ser noticiado o surgimento de novas ocupações e favelas formadas por “despejados da pandemia”, pessoas que tiveram que deixar as casas onde moravam por não conseguirem mais arcar com o custo de aluguel e outras contas. Essas novas ocupações, por sua vez, passaram a ser ameaçadas de remoção, seja por ações administrativas de controle urbano promovidas pelas subprefeituras, ou por ações judiciais de reintegração de posse, resultando em um acirramento das violações do direito à moradia.
Ao menos desde a década de 1970, a formação das periferias paulistanas foi marcada pela abertura de loteamentos irregulares e pela autoconstrução, como consequência da industrialização dos baixos salários (MARICATO, 1979). Esse processo não deixou de alcançar as décadas seguintes; em que pese os esforços e lutas pela reforma urbana, as periferias continuaram a se expandir em direção às bordas de São Paulo, extrapolando os limites do município, em razão, inclusive, da ação das grandes obras de infraestrutura do Estado.
É o que temos observado nas pesquisas em andamento sobre um determinado território na periferia paulistana, atravessado pelas obras do Rodoanel Mário Covas, uma obra de escala metropolitana rasgando um tecido urbano heterogêneo, caracterizado pela presença de áreas ambientalmente sensíveis e por ciclos históricos de disputas por terra, grilagens e uma diversidade de conflitos fundiários. Nesta porção da cidade, o acirramento de disputas territoriais complexas é parte integrante de um cenário híbrido de velhas e novas formas de acesso à terra urbana e de constituição do morar popular.
As intervenções realizadas pelo Estado impulsionaram um novo ciclo de expansão urbana na região, protagonizado sobretudo pela abertura de novos loteamentos irregulares e estabelecimento de novas ocupações de moradia nas áreas adjacentes à obra viária, mas também em áreas verdes e nos poucos vazios dos bairros do entorno – em um raio de 2,5 km de um determinado ponto do território, foram identificadas 21 ocupações estabelecidas em um período de quatro anos. A celeridade com que ocupações surgem e, em muitos casos, são removidas, no entanto, sequer permite que saibamos sobre a existência de algumas delas. Ademais, esse movimento de remoção – ocupação – remoção é um componente importante das dinâmicas urbanas que constituem este território, marcando trajetórias de vida e territórios com o signo da transitoriedade permanente (ROLNIK, 2015), que passa ao largo das diretrizes do ordenamento territorial estabelecidos pelo Plano Diretor e pelo zoneamento do município.
São ocupações de moradia compostas por diferentes formas urbanas e tecidos associativos heterogêneos, transpassados por regimes de controle territorial — com agentes do Estado atuando nas fronteiras da legalidade, ora como polícia, ora como segurança privada, ao lado de agentes do crime, em diálogo com vereadores e seus assessores — que concorrem e se sobrepõem, constituindo, assim, um ordenamento socioterritorial em constante transformação e disputa. Se os movimentos de moradia organizados em entidades formais estão ausentes deste território, seu repertório, pautado na luta por direitos, é mobilizado pelos mais diversos agentes presentes nas ocupações, combinando-se a outros repertórios que também circulam pelo território, como aqueles do “mundo do crime” (FELTRAN, 2010), os das igrejas neopentecostais, entre outros repertórios.
Parte destas ocupações estão localizadas sobre áreas remanescentes de desapropriações realizadas para o Rodoanel, enquanto outras se instalaram em terrenos vazios, ou mesmo em áreas verdes do entorno. A maior parte é organizada por lideranças comunitárias da região, que mobilizam repertórios e redes de apoio variadas, que vão de empresários de ônibus com atuação local, arquitetos e advogados, a policiais militares ou, ainda, pessoas identificadas como membros do Primeiro Comando da Capital (PCC). A presença e as formas em que estes agentes se combinam, ou não, em cada uma das ocupações impactam na forma urbana e na organização de cada uma delas, influenciando, também, em sua maior ou menor chance de permanecer.
Reproduzindo os repertórios oriundos dos movimentos de moradia politicamente organizados, as ocupações são realizadas de forma coletiva e a distribuição inicial dos lotes é feita a partir de um cadastramento das famílias e sua classificação de acordo com a participação nas atividades definidas pelas lideranças, como a colaboração no trabalho coletivo e a permanência de uma quantidade diária de horas no terreno, por exemplo. Apesar da comercialização dos lotes ser proibida na maioria das ocupações – ainda que haja variações no tempo dessa proibição – as vendas acontecem desde o início, revelando um pujante mercado popular. Os valores dos lotes variam muito entre elas e, também, ao longo do tempo. Conforme a ocupação consegue permanecer e investe em melhorias infra estruturais, os lotes são valorizados e ainda mais procurados.
Dentre os ocupantes, há uma grande diversidade de perfis. São pessoas que, principalmente, viram na ocupação uma solução habitacional diante de uma situação anterior ainda mais precária, famílias com muitas crianças, mães solo; há também uma crescente presença de migrantes transnacionais, sobretudo bolivianos; e há, ainda, aqueles que têm ali uma fonte de extração de renda, seja como meio de complementação da renda ou como forma de garantir a “aposentadoria” diante de um mundo do trabalho altamente precarizado. A extração de renda a partir da ocupação ocorre desde a abertura de pequenos comércios e serviços à construção de casas para aluguel, realizada por alguns donos de lotes que não vivem na ocupação. Essa divisão entre ocupantes e donos de lotes é, ademais, fonte de inúmeras tensões, conflitos e negociações no cotidiano local.
Com a pandemia, houve uma expansão significativa dos loteamentos, das ocupações existentes, e também o surgimento de novas ocupações, o que acelerou ainda mais os processos de expansão urbana que haviam sido impulsionados pelo Rodoanel nas bordas verdes de São Paulo. Compreender essas dinâmicas, a diversidade e a complexidade das ocupações, é um elemento fundamental para o entendimento do processo de expansão urbana em curso neste local – e, podemos arriscar, também em outras periferias da cidade de São Paulo. Se a emergência habitacional já era uma realidade antes da pandemia, ela tende a se agravar radicalmente diante de seus efeitos devastadores sobre a população. A linguagem e as métricas do planejamento urbano não têm conseguido ler e dar respostas às necessidades do morar popular, e, ainda, têm reforçado o discurso criminalizante de moradores e ocupantes das periferias de São Paulo.
Por isso, entendemos que mais do que revisar as diretrizes, os objetivos e estratégias do Plano Diretor, bem como as regras de parcelamento, uso e ocupação do solo, nesse momento de intensificação dos processos de precarização do morar popular precisamos de uma agenda emergencial para a vida que leve em conta leituras sobre os processos de precarização que atingem as periferias urbanas.
* Pesquisadoras/es do LabCidade.
Referências
FELTRAN, G. “Periferias, direito e diferença: notas de uma etnografia urbana”. In: Revista de Antropologia. São Paulo, USP, 2010, v. 53 nº 2.
MARICATO, E. [org]. “A produção capitalista da casa (e da cidade) no Brasil industrial.” São Paulo: Alfa Ômega, 1979.
ROLNIK, R. “Guerra dos lugares. A colonização da terra e da moradia na era das finanças.” São Paulo: Boitempo, 1ª ed, 2015.
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