Prédio Figueira ALto do Tatuapé, que terá 52 andares. Gabriel Cabral / Folhapress

Por Pedro Mendonça, Paula Freire Santoro e Raquel Rolnik*

Dois projetos de lei (PLs) propostos agora em abril por vereadores de São Paulo – o PL nº 225/2020, do vereador Eduardo Tuma (PSDB), e o PL nº217/2020, do vereador Police Neto (PSD) – prevêem “ações emergenciais” e “Plano Emergencial de Ativação Econômica” da cidade para, segundo os proponentes dos PLs, enfrentar os efeitos da pandemia de Covid-19. Os PLs atuais pressionam por alterações consideráveis em estratégias e parâmetros do Plano Diretor Estratégico de 2014 e a Lei de Zoneamento de 2016, pedindo descontos, isenções ou adiamento de pagamentos de impostos e instrumentos urbanísticos municipais. Na prática, querem proteger as construtoras e recolocar na pauta o “velho pedido de desconto” em impostos e contrapartidas urbanísticas que incidem sobre a produção imobiliária , além da não menos frequente proposta de alterações no zoneamento, aumentando potenciais construtivos.

Não é a primeira vez que projetos assim são propostos. Lembram-se da tentativa de uma verdadeira black friday em 2018, com 50% de desconto na outorga onerosa do direito de construir para o mercado imobiliário? Agora é exatamente o mesmo desconto para o mesmo mercado, que não obteve em 2018, mas agora em vez de black friday é o saldão Covid-19! Vale lembrar também das tentativas de revisão do zoneamento. Dessa vez, as propostas sugerem votação em regime de urgência, justificada pela pandemia, ao invés de seguir os procedimentos necessários para alterações deste tipo de lei. E como, desta vez, o isolamento social impede a realização de audiências públicas, tudo pode passar sem discussão pública mesmo…

Analisando o conteúdo dos PLs verificamos que não se tratam de medidas para facilitar o acesso da população à moradia, colaborando para enfrentar o quadro de necessidades habitacionais. Ao contrário, as alterações propostas possibilitam a construção de apartamentos maiores, e mais garagens, que muito provavelmente serão destinados para famílias com rendas mais altas em áreas bem servidas de transporte público. Os incentivos são para a produção imobiliária. Querem construir mais, pagando menos ou postergando pagamentos.

Mas justamente os recursos para os quais se pedem desconto são exatamente os fundos públicos que, por decisão da própria Câmara, têm sido mobilizados em ações de enfrentamento à Covid-19, protegendo os que precisam de apoio do Estado para sobreviver em meio à pandemia.

Os recursos do Fundo de Desenvolvimento Urbano (Fundurb) – que recebe a arrecadação da Outorga Onerosa do Direito de Construir que o PL prevê dar descontos de 50% –, têm historicamente sido investidos em habitação de interesse social, mobilidade, infraestrutura urbana, áreas verdes, patrimônio cultural, entre outros (fonte: Monitoramento do PDE, dez. 2018), em várias regiões da cidade, tanto no centro como na periferia. Foi este o recurso mobilizado para a construção dos hospitais de campanha no Pacaembu e Anhembi com 2 mil leitos e previsão de mil profissionais de saúde trabalhando. A liberação do uso da verba existente em vários fundos municipais, não apenas do Fundurb, foi autorizada pela Lei Municipal 17.335/2020 votada em março, que previa a utilização de R$ 1,5 bilhão em ações de enfrentamento à Covid-19. No caso do Fundurb, o recurso deverá ser ressarcido ao fundo posteriormente.

Em 2019 o FUNDURB chegou a arrecadar cerca de R$ 714 milhões, face a recuperação que se encontrava o setor imobiliário. Quando mais se constrói, maiores são os recursos do FUNDURB e, portanto, maiores as possibilidades da prefeitura investir em habitações de interesse social, transporte coletivo e outras ações de interesse público.

O conteúdo dos PLs

Os PLs prevêem benefícios e isenções diversas ao mercado imobiliário – um dos PLs coloca que estas exceções são limitadas a três anos, outro faz propostas para períodos indeterminados que podem ser bem maiores –, supostamente para viabilizar a recuperação da economia. São propostas muito parecidas: pretendem alterar o Plano Diretor Estratégico de 2014 e a Lei de Zoneamento de 2016 da cidade, e conceder descontos de 50% do valor da outorga onerosa do direito de construir, entre isenções, adiamentos de pagamento em relação à impostos municipais como o ITBI, IPTU e ISS.

Na nossa leitura, tanto o PDE quanto o Zoneamento têm propostas até tímidas frente aos desafios enfrentados na cidade, e aumentaram as possibilidades de construção de forma concentrada em algumas áreas da cidade (ver Mapa 1 a seguir), além de diversos incentivos pró-mercado. Mas o mercado quer mais.

Mapa 1 – Ganho (positivo ou negativo) de coeficiente de aproveitamento máximo entre os zoneamentos de 2004 e de 2016. Elaboração: Pedro Mendonça.

O zoneamento prevê maior adensamento construtivo no entorno dos eixos de transporte público de média e alta capacidade (linhas de metrô, monotrilho, trem e corredores de ônibus) para permitir que tenha mais gente morando onde existe oferta de transporte público coletivo, evitando o modelo da cidade centrado nos carros. Estas áreas foram delimitadas como Zonas Eixo de Transformação Urbana (ZEUs) e podem construir até 4 vezes a área do terreno como seu coeficiente de aproveitamento (CAs). Esse coeficiente diz quantas vezes a área do terreno um proprietário pode construir, desde que pague a Outorga Onerosa do Direito de Construir (OODC) pela área que exceda 1 vez a área do lote. A Outorga paga para construir esses empreendimentos alimenta o Fundurb.

Os PLs trazem alterações nas ZEUs alterando os objetivos previstos para a zona. Propõem que as unidades habitacionais nas ZEUs possam ser maiores, mudando o perfil de quem pode comprá-las para classe média e alta, invertendo a lógica de construir unidades menores para mais gente morar perto do transporte público. O PDE criou a Cota Parte Máxima de Terreno, que é um número que determina o número máximo de unidades permitidas num empreendimento e indiretamente uma área média por unidade. A Cota em ZEU é 20 m² e o PL quer mudar para 30 m² por unidade residencial, possibilitando que a área média das unidades residenciais aumente de 80 m² para 120 m².

Os PLs permitem um número maior de garagens em ZEU cujas áreas construídas não são consideradas para o cálculo de outorga onerosa, justamente estimulando a mobilidade em carros em uma área bem servida de transporte público. Propõem que o número de garagens nos usos residenciais amplie de 1 por unidade, para 1 para cada 60 m² construído computável. Considerando a proposta de permitir apartamentos de 120 m² em média, cada apartamento passa a ter como incentivo (ou seja, excluído do pagamento da outorga) 2 garagens. Com isso, os empreendimentos nos eixos de transporte existentes – áreas bem localizadas – podem construir apartamentos com área média de 120 m² e duas vagas de garagem. Para quem será um apartamento com essas características?

Os PLs também prevêem que as Zonas Eixo de Transformação Urbana Previstas (ZEUPs) – áreas demarcadas no zoneamento onde o transporte público está planejado para chegar, mas ainda não chegou – sejam tratadas como eixos de transporte existentes (ZEU), tendo seu CA máximo aumentado para 4 vezes a área do terreno. Isso significa que antes mesmo da linha chegar o mercado imobiliário já pode construir muito, adensando áreas cuja estrutura de mobilidade não comporta tanta gente morando. Essa mudança de tipo de zona se soma aos ganhos de área dos apartamentos e número de vagas que não pagam outorga. Alguns eixos planejados (ZEUPs) cortam justamente os bairros da Mooca, Anália Franco e Ipiranga, regiões de interesse do mercado, que tiveram potenciais restringidos no PDE e zoneamento, mas há áreas nessa situação por toda a cidade.

Os projetos propõem que os recursos obtidos com a Outorga em ZEUs e ZEUPs, ainda que diminuídos, sejam usados para as obras de infraestrutura do sistema de transporte do eixo, valorizando seus empreendimentos, reconcentrando investimentos nas áreas do entorno dos empreendimentos. Atualmente os recursos vão para o Fundurb e é o Conselho de Política Urbana que determina para onde vai ser usado, podendo investir em áreas mais carentes ou em políticas mais urgentes. Outro artigo do LabCidade já mostrou que havia, entre 2013 e 2015, uma certa desconcentração territorial na utilização dos recursos do Fundo, promovendo redistribuição espacial.

Além disso, o PL quer dar desconto de 50% do valor da outorga onerosa em uma vasta fatia do Centro Expandido e bairros com infraestrutura – na Macroárea de Urbanização Consolidada e de Qualificação Urbana – se iniciarem obras em um ano. A área de desconto coincide com os eixos planejados na Vila Mariana, Ipiranga, Mooca e Aricanduva – dando uma pista de quais áreas são visadas pelo mercado imobiliário. Uma síntese dos descontos pode ser enxergada no Mapa 2 que segue.

Mapa 2 – Os PL prevem desconto de 50% de outorga nas macroáreas em amarelo, e CA 4 nas ZEUPs, em rosa. Elaboração: Pedro Mendonça.

Também propõem uma série de “desonerações” na outorga, IPTU, ITBI e ISS, em um verdadeiro “saco de gatos” envolvendo: o parcelamento em 10 vezes ou adiamento do pagamento da outorga onerosa, colocando a permissão das construtoras obterem o Alvará de Execução antes de terem pago a Outorga Onerosa; a permissão de conclusão de obra sem o comprovante de quitação de pagamento de Imposto sobre Serviços; além da isenção do pagamento de Imposto Territorial de Bens Imóveis (ITBI), pago na compra e venda de imóveis, apenas para quem comprar imóveis novos, buscando atrair compradores para seus negócios e não negócios com imóveis já existentes; regula a isenção de Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) por 20 anos em imóveis ao longo dos Eixos de Desenvolvimento denominados Noroeste e Fernão Dias, ou isenção de IPTU por um ano para quem fizer melhorias em seu imóvel seguindo as normas de construção e acessibilidade; entre outros.

Este “saco de gatos” tem vícios, passa por cima dos ritos de aprovação necessários para estes temas. Sabe-se que as alterações tanto da legislação tributária quanto da legislação urbanística precisam ser acompanhadas de audiências públicas. As alterações de zoneamento são ainda mais restritivas: têm que ser de iniciativa do poder executivo,  além de terem que passar por um processo participativo amplo, que não se restringe às audiências públicas, tanto junto ao poder executivo como legislativo, como prevê a lei federal do Estatuto da Cidade.

Leve 2 pague 1: renúncia de receitas públicas e alterações de zoneamento em um mesmo PL

A proposta não busca facilitar a compra de uma casa, mas sim a produção e venda de unidades novas que estão nas mãos das construtoras. É explícita a intenção de beneficiar a indústria da construção civil, sem vínculo nenhum com as necessidades de famílias com rendas mais baixas, como renda e moradia por exemplo. Setor que já vinha indo bem, segundo dados do próprio Secovi-SP, o lançamento de novas unidades na cidade bateu recorde em 2019 e vinha em curva ascendente, mesmo sob a vigência do zoneamento e do plano diretor que tanto querem mudar.

Enfim, a pandemia parece funcionar como justificativa oportunista – inclusive mobilizando a aprovação em regime de urgência – para as diversas tentativas infrutíferas de alterar o PDE e zoneamento por parte do mercado imobiliário e obter isenções e renúncias de contrapartidas redistributivas e impostos, justamente no momento em que mais precisamos de fundos públicos e redistribuição. Um verdadeiro “leve 2 pague 1”!

A pandemia não resolveu nenhuma das nossas pendências urbanas: não diminuiu as desigualdades urbanas, não interrompeu as mudanças climáticas, não mudou os paradigmas de mobilidade. Não se trata aqui neste texto de defender os frágeis instrumentos urbanísticos do plano diretor e zoneamento, mas de questionar a correlação de forças e os reais efeitos da pandemia no jogo político. Até quando evitaremos o planejamento da nossa cidade em nome do mercado imobiliário?

*Pedro é estudante de Arquitetura e Urbanismo da FAU-USP e pesquisador do LabCidade; Paula e Raquel são professoras da FAU-USP e coordenadoras do LabCidade.

________________________

Acesse os dados do LabCidade usados para elaboração do texto:

https://github.com/labcidade/comparativo-lpuos-2004-2016

(Transição para o gitlab em curso)