Por Pedro Mendonça, Aluízio Marino, Raquel Rolnik, Leonardo Foletto**
Com a adoção de medidas de isolamento social em resposta à pandemia de Covid-19, governos e empresas de tecnologia têm apresentado análises sobre o impacto e adesão a essas medidas a partir do monitoramento dos nossos celulares. Tais informações, que são obtidas por meio de smartphones sem nosso consentimento explícito e direto, embora dentro da legislação atual brasileira, alimentam grandes bases de dados que registram nossos comportamentos, permitindo a princípio determinar quem e onde está cumprindo as medidas de isolamento.
No Brasil, uma empresa privada, a inLoco tem oferecido seus dados de monitoramento para pelo menos 20 estados durante a pandemia, além de produzir leituras próprias sobre a distribuição da adesão ao isolamento em grandes cidades brasileiras. Ela afirma coletar os dados a partir de aplicativos de terceiros, como Peixe Urbano, Letras.mus.br, Cadê o Ônibus, Tudo Gostoso, Vivo Meditação, entre outros, que permitem, em suas políticas de privacidade, a prática de transmitir dados para outras empresas que podem fazer “tratamento para marketing”. Esta é a brecha pela qual a In Loco faria um serviço dentro da legislação atual brasileira e da Lei de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), que seria implementada neste 2020 mas foi adiada para o ano seguinte em função do Coronavírus.
Porém, por ter metodologia de processamento de dados fechada e fundamentos desconhecidos, não é possível atestar a validade dos dados e suas leituras. Além disso, como se tratam de informações estratégicas, levanta-se a questão: como serão utilizadas essas informações no enfrentamento da crise?
Do que estamos falando?
As tecnologias de mapeamento têm relação histórica com as estratégias de saúde pública e enfrentamento de epidemias, com registros de mapeamento de surtos desde o século XIX. As tecnologias e paradigmas utilizados por estas leituras cartográficas foram desenvolvidas por meio de parcerias entre pesquisadores das áreas da saúde e geografia – o mais conhecido deles é o mapa de clusters, elaborado por John Snow, que explicava a transmissão da cólera na cidade de Londes em 1850 – e se desenvolveram ao longo de mais de um século.
No início dos anos 2000, o desenvolvimento de sistemas e ferramentas online de geolocalização ampliaram significativamente as possibilidades de mapeamento de epidemias e seus impactos, quase em tempo real. Observamos nos últimos dias a multiplicação de mapas elaborados por grupos de pesquisa e movimentos sociais, principalmente com objetivo de apresentar os possíveis impactos da covid-19 nos diferentes territórios e, desta forma, poder facilitar uma rede de doações de alimentos e artigos de higiene para os lugares que mais precisam.
Ao mesmo tempo estas novas tecnologias aliadas à difusão de smartphones abrem brechas para que governos e empresas passem a monitorar os movimentos dos cidadãos. Bases de dados públicas e privadas gigantescas (denominadas “big data”) foram criadas e alimentadas nas últimas duas décadas, acumulando dados de interação em redes sociais e comportamentos sociais vinculados à localização. Trata-se de um mercado de informações privadas, obtidas de forma não transparente e não necessariamente consentidas por nós, que são acumuladas em empresas especializadas em big data e vendidas para outros serviços que usam esses dados de forma que ainda hoje não é muito clara. Já é de conhecimento público, por exemplo, que governos e empresas criaram tecnologias que foram usadas inclusive para influenciar eleições e, como foi demonstrado na Campanha do Brexit inglês e nas eleições que elegeram Donald Trump como Presidente dos Estados Unidos, ambas em 2016.
Com a explosão do surto de Covid-19, algumas dessas bases de dados privadas passaram a ser mobilizadas por governos e grupos de pesquisa ligados a instituições públicas, como é o caso da base de dados da empresa in Loco no Brasil.
O que é isolamento para os algoritmos?
O mapa acima faz parte de um vídeo disponível no site da In Loco. Segundo às informações disponibilizadas nesse vídeo, trata-se de uma análise de dados agregados de deslocamento que detecta, por exemplo, quando um determinado dispositivo móvel permanece em uma região, para então gerar um índice de isolamento por bairros em São Paulo. O objetivo desse índice é mostrar se as pessoas estão respeitando o isolamento, trazendo o percentual dos bairros onde a população não está se deslocando.
Os dados obtidos pela In Loco sugerem que as periferias estariam aderindo mais ao isolamento social quando comparadas ao centro expandido da cidade de São Paulo. Entretanto, há alguns problemas nessa afirmação. Para começar, a definição de “isolamento” . A In Loco usa algoritmos para cruzamentos de dados que não são explicitados, então não temos como saber quais os critérios adotados para definir o que é ou não isolamento. Como a empresa utiliza dados proprietários de outros aplicativos (que não estão abertos), não sabemos quais são seus recortes e limitações, o que torna, portanto, impossível comprová-los ou refutá-los. Não há nenhuma forma de realizar contraprova: são dados únicos coletados por aplicativos parceiros da InLoco, protegidos por propriedade intelectual – o que é uma outra questão também: não temos propriedade sobre os dados que produzimos sobre nós em smartphones.
Existem outros problemas intrínsecos à infraestrutura de captura dos dados que podemos apontar: (i) a necessidade de posse e porte de aparelhos com sensores de geolocalização conectados em rede; e (ii) a necessidade de aplicativos específicos que tenham permissão para capturar e compartilhar esses dados. A falta de compromisso com a divulgação da metodologia utilizada no levantamento nos deixa em dúvida não apenas em relação a definição de isolamento adotada, mas também ao próprio alcance e captura dos dados. Considerando que apenas uma parcela da população possui acesso à smartphones com plano de dados sem restrições, é difícil cravar uma análise definitiva sem ter em questão a limitação da infraestrutura de acesso à internet acesso nos territórios populares.
Além disto, como a empresa não compara este retrato com a mobilidade das pessoas nesses territórios antes da quarentena, não é possível afirmar se estamos diante de um padrão histórico (ora as classes mais altas em geral fazem mais viagens per capita) ou de um efeito das medidas de isolamento social.
Se a forma como esses dados são processados é uma caixa-preta que não pode ser checada, como confiar neles? Diante de falta de transparência do processo de coleta e análise de dados, é de se fazer também a pergunta: para que(m) serve(m) esses dados? Numa época onde cada vez mais governos, em parcerias com empresas privadas, estão utilizando dados para monitoramento de todas as ações das pessoas, como já comentamos aqui no que diz respeito às câmeras de reconhecimento facial em espaços públicos, alertamos para que monitoramento de dados como o da InLoco sirva para aumentar ainda mais o controle sobre os corpos, especialmente em regiões periféricas onde a repressão já é maior. Em nome de um suposto ganho de saúde para todxs, não estaríamos produzindo uma sociedade ainda mais disciplinar?
*Di Campana Foto Coletivo é um grupo pessoas que utiliza a fotografia como instrumento de registro com o objetivo de fomentar outro imaginário de favela. Estão em uma campanha para arrecadar fundos para ajudar no combate ao covid-19 nas favelas.
** Graduando em Arquitetura e Urbanismo na FAUUSP, pesquisador do LabCidade;
Doutorando em Planejamento e Gestão do Território UFABC, pesquisador do LabCidade;
Professora da FAU-USP, coordenadora do LabCidade;
Jornalista, Doutor em Comunicação pela UFRGS, coordenador de comunicação do LabCidade;
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