Foto: Inova Urbis

*Por Isadora Guerreiro e Raquel Rolnik

Rebatizando o que já existe com uma embalagem verde-amarela e investindo pesado na direção da financeirização da moradia — ou seja, no oferecimento das dívidas imobiliárias das famílias como nova isca para o mercado financeiro —, o novo programa habitacional do governo federal, o Programa Casa Verde e Amarela (PCVA), foi finalmente lançado, no dia 25 de agosto, por meio da Medida Provisória 996. Há muito que se falar sobre a nova política habitacional do governo federal e, por isso, este é o primeiro de uma série de textos discutindo o substituto do Minha Casa Minha Vida (PMCMV). Neste artigo, comentamos o centro da proposta para as famílias de mais baixa renda: a regularização fundiária.

Para começar a conversa, uma das principais diferenças entre este programa e o PMCMV é o fim da antiga Faixa 1, destinada a famílias com renda familiar mensal de no máximo R$ 1.800 reais (R$ 2.000 reais agora). No PMCMV, as construtoras e Entidades construíam casas que eram repassadas às famílias beneficiárias quase que integralmente subsidiadas pelo governo federal, através de recursos do Orçamento Público — o subsídio poderia chegar a 95%, e as prestações variavam entre R$ 80 e R$ 270, de acordo com a renda. As casas e apartamentos do PMCMV Faixa 1 eram utilizados pelas prefeituras para viabilizar reassentamentos de comunidades removidas, bem como para programas municipais ou estaduais de acesso à moradia para esta faixa muito baixa de renda, na qual, aliás, se concentra a maior parte das necessidades habitacionais do país. A Faixa 1 também era utilizada por Entidades para construção para sua demanda selecionada, seja em projetos por autogestão, seja pela subcontratação de construtoras (“Empreitada Global”). Nesta versão do Programa Casa Verde e Amarela, para esta faixa de renda, não há mais a construção de casas e apartamentos, apenas regularização fundiária e melhorias habitacionais.

Estes dois pilares de atuação estão sendo agora alardeados como uma grande novidade dentro do campo das políticas habitacionais brasileiras. Mas… não é bem assim. A regularização fundiária é uma prática de décadas, já que podemos afirmar que a maior parte dos territórios populares do país são constituídos por vínculos entre os espaços e seus ocupantes que não necessariamente passam pela propriedade individual registrada em cartório e por um processo de constituição de bairros mediado por legislação urbanística e normas administrativas das prefeituras. Em várias cidades brasileiras, grandes porções do território popular urbano não coincidem com suas normas, todas baseadas na ideia de que o processo de ocupação da cidade começa com a propriedade registrada da terra e do lote — o que não é verdade para a maior parte dos assentamentos populares no país. Como este fato constituiu, historicamente, um dos principais bloqueios para que estes bairros pudessem ter acesso à infraestrutura e equipamentos públicos, a “regularização” tem sido uma demanda de milhões, e portanto também objeto importante da política.

Assim, programas de regularização fundiária já foram implementados desde os anos 1990 por vários governos estaduais e municipais, incluindo não apenas a dimensão fundiária, mas também a consolidação física dos bairros. Em 2004, o Governo Federal instituiu o “Programa Papel Passado”, apelido do Programa Nacional de Regularização Fundiária (PNRF). O programa se consistiu em promover “articulação institucional visando à remoção de obstáculos jurídicos e legais à regularização fundiária […] e apoio financeiro e técnico aos estados, Distrito Federal e municípios para estruturação de programas e ações de regularização fundiária urbana”. Com uma meta inicial de um milhão de moradias regularizadas, o programa apoiou municípios, Estados e organizações da sociedade civil a promover ações de regularização.

Porém, trazer todo esse universo para dentro da regularidade é um processo difícil, moroso, conflituoso. Em primeiro lugar, é importante apontar, entretanto, que o mesmo processo — político, urbanístico, econômico — que impede o acesso à terra urbanizada e à moradia para a maior parte dos residentes  do país, também dificulta enormemente sua “regularização”. Assim, a experiência dos vários programas de regularização já implementados mostra o quanto estes são uma verdadeira gincana que raramente chega ao fim. Por outro lado, a história de nossas grandes cidades é a história de um processo de consolidação infinito, em que o título de propriedade não necessariamente é o elemento mais importante se para garantir o direito à cidade.

Qual seria a diferença essencial do novo programa de regularização fundiária em relação a políticas anteriores? Basicamente, neste programa, apoiado na Lei de Regularização Fundiária Rural e Urbana 13.465, aprovada no Governo Temer, é possível regularizar a propriedade em espaços sem condições de habitabilidade, sem a infraestrutura urbana que os estados e municípios deveriam fornecer. Basta um “de acordo” do município e a disposição dos próprios moradores de arcar com os custos (inclusive da terra, quando vários instrumentos constitucionais garantiriam a terra SEM estes custos). Os moradores de áreas classificadas como regularização fundiária de interesse social (REURB-S), de baixa renda, podem promover a regularização com seus próprios recursos, arcando com todos os custos do projeto e documentações através de financiamento via Fundo de Desenvolvimento Social (FDS), o que era anteriormente uma obrigação do Estado. Os recursos de R$ 500 milhões, previstos para serem liberados ainda em 2020, provenientes do FDS, deverão atender, segundo as previsões do Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR), 130 mil famílias nas modalidades de Regularização Fundiária e Melhorias, de modo que a média de valor por contrato é de R$3.800, valor esse que corresponderia a intervenções de pequeno porte e sem possibilidades de resolver problemas de precariedade estrutural das moradias e dos assentamentos.

Além disso, o PCVA une a regularização fundiária a um dos elementos mais perversos do PMCMV: o sistema de oferta, não de demanda. Ou seja, no PMCMV, não eram as prefeituras que diziam onde, como e quantas unidades habitacionais seriam produzidas, mas sim a oferta realizada diretamente pelas construtoras. Estas compravam a terra que melhor lhe servisse (as mais baratas) e construíam as moradias mais padronizadas e menores possíveis, sem nenhuma preocupação de inserção urbana ou qualidade construtiva. No PCVA, a regularização fundiária será feita segundo a mesma lógica: não é uma política urbana pública que vai incorporando os assentamentos à cidade, inclusive assumindo a responsabilidade sobre a manutenção futura das áreas e serviços públicos. São empresas privadas que oferecem seus serviços (com projetos) para as áreas que elas mesmas selecionam. Lembrando: são as famílias que pagam pela terra. Ou seja, o PCVA apenas adianta recursos para empresas de regularização fundiária fazerem mediação de conflitos, estabelecerem preço pela terra junto ao proprietário (que pode ser a própria empresa), projetarem e aprovarem o loteamento (sem implantarem infraestrutura) e, principalmente, intermediarem os pagamentos, com seus “custos operacionais”. Um ponto importante deste esquema é que os riscos de não pagamento não são mais arcados pelo poder público, mas sim pelo agente privado. Uma regularização sempre envolve um conjunto de moradias. Se um ou outro morador não pagar, a terra como um todo não pode ser perdida. Desta maneira, usa-se segurança privada para os casos de inadimplência, já que se trata de um contrato entre particulares, não mediado pela justiça por não se tratar de área legalizada ainda.

Se não é para concretamente melhorar a condição dos bairros populares e, ainda, expulsar violentamente aqueles que não conseguem arcar com o preço da terra, por que e para que regularizar então? O objetivo do governo — como, aliás, já vimos em experiências anteriores pelo mundo, amplamente avaliadas como fracassadas, inspiradas por Hernando de Soto — é a titulação em massa de imóveis irregulares. Em declarações recentes, tanto o Ministro Rogério Marinho (MDR), quanto o presidente do Banco Central (Bacen), Roberto Campos Neto, enfatizaram o objetivo de conferir títulos plenos de propriedade para que os imóveis se valorizem e para que as famílias possam “extrair valor de suas casas”. Noutros termos, trata-se de empregar a propriedade imobiliária popular regularizada para inserir parcela significativa da população no mercado de crédito imobiliário, preparando terreno para securitização das dívidas, outro dos objetivos perseguidos pelo atual governo, com apoio da Caixa Econômica Federal (CEF), tema que abordaremos em outro artigo.

Ainda segundo o ministro do MDR, Rogério Marinho, em fala durante o evento de lançamento do PCVA, a Lei de REURB veio para atacar a informalidade “que campeia nas nossas cidades” e o novo programa habitacional vai “entregar ao cidadão mais humilde o que certamente para ele é extraordinariamente importante: a escritura pública da sua residência, que acresce de imediato de 40% a 50% de valorização do seu imóvel. Isso é transferência de renda na veia, Sr. Presidente! Isso é ação social!”.

Fazer com que as pessoas consigam “extrair valor das suas casas”, retirando os entraves para o desenvolvimento do mercado de “Home Equity” — ou seja, empréstimos com imóveis como garantia, nos quais os juros são mais baixos, ampliando desta forma o alcance do mercado de crédito —, foi o objetivo perseguido por programas apoiados pelo Banco Mundial em vários países, inclusive no Peru e América Central nos anos 1990. Hoje, esta política foi abandonada pelo próprio Banco Mundial e outras agências.

Na verdade, mais do que permitir “transferir renda na veia”, uma política como esta é a forma de “destravar” a informalidade da terra na América Latina, um dos maiores obstáculos para a expansão do complexo imobiliário financeiro sobre a totalidade do território das cidades. Isto porque a condição essencial para que uma área possa ser objeto de incorporação imobiliária é ter sua propriedade devidamente registrada em cartório. No Brasil, hoje, são quilômetros de cidade nas mãos de um mercado popular, mas “travadas” para a incorporação imobiliária, ou seja, para a associação da produção do espaço com os circuitos financeiros.

Isso não foi feito até o momento no país, dentre outros fatores, também pela insegurança representada pelo setor cartorário brasileiro. A solução é a inserção da tecnologia de blockchain nos cartórios – que já integra 1.349 deles e que será generalizada por meio do PCVA. Tal tecnologia foi a que tornou possível a existência das criptomoedas (como os bitcoins), por possibilitar um ambiente de negócios digitais por meio da internet: contratos realizados e certificados de maneira remota, com padronização e circulação de recursos de maneira global e independente das legislações nacionais. No caso dos cartórios, o blockchain integraria nacionalmente os registros notariais, daria segurança de não-reversibilidade à titulação, celeridade (de 40 para 5 dias para o registro) e transparência às transações, além de coibir fraudes, usando de criptografia. Algo que, segundo Pedro Guimarães, presidente da CEF, é fundamental para implantar popularmente o Home Equity no Brasil.

Vemos que a regularização fundiária proposta pelo PCVA não pretende nem dar melhores condições de habitação e urbanidade, nem conferir segurança de posse, mas principalmente “extrair o valor da casa” por meio do endividamento. A “transferência de renda” à qual alude o ministro do MDR é, na verdade, um embuste que esconde o movimento contrário: a extração, pelo mercado financeiro, de valor da casa e da terra, investimentos diretos dos moradores. Segundo Isaac Sidney, Presidente da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), em fala durante o lançamento do PCVA, o programa de regularização era fundamental para “atrair investimento” para o país, sem gastos ou riscos, seja do governo, seja dos bancos. Adicionaríamos: apenas das classes populares tomadoras de crédito.

*Isadora é professora da FAU-USP e pesquisadora do LabCidade. Raquel Rolnik é professora da FAU-USP e coordenadora do LabCidade. Coluna originalmente publicada no UOL.