Por Renato Abramowicz Santos e Janaína Fernandes dos Santos (*)

 

 

As famílias removidas em 2021 de dois quarteirões de Campos Elíseos, região central de São Paulo, foram convocadas em agosto de 2022 a enviar às pressas documentos para entrar em um processo de análise realizado pela “Canopus – PPP Habitacional SP Lote 1 S/A”, empresa que ganhou a concessão para executar e gerenciar a produção das moradias na região. Após uma longa espera, as respostas começaram a chegar, e muitas pessoas estão recebendo a notícia que foram desclassificadas – ou seja, não terão a chance de acessar um financiamento para a compra de um apartamento nos lotes construídos pela Parceria Público-Privada (PPP) nos quarteirões de que foram removidas, como havia sido prometido e garantido pela prefeitura representada em grande parte desse processo, iniciado em 2017, pela secretaria municipal de Habitação (Sehab).

Apesar da insistência e cobrança das famílias, as informações e números totais até o momento não são oficiais, nem foram publicados ou divulgados – tanto de quem foi reprovado e por quê, quanto de quem foi aprovado. O que ficamos sabendo até agora é que 10 famílias removidas dos quarteirões foram aprovadas no processo de análise, e mais de 10 já receberam o anúncio da concessionária com a desclassificação – sem contar as muitas outras que não conseguem obter notícias ou atualizações de sua situação. Vale lembrar que 190 famílias foram cadastradas pela prefeitura em 2017 como moradoras dos dois quarteirões com a promessa de receber atendimento habitacional definitivo na área.

Os motivos para desclassificação no processo de análise da PPP também não são transparentes nem oficiais. Segundo moradores em chamadas telefônicas privadas com a concessionária, responsável pela avaliação e decisão final, as razões variam entre justificativas por falta de “limite de cheque especial”, não possuir cartão de crédito, ou não ter uma conta corrente em banco e agência física – contas digitais não são aceitas.

É importante destacar que o perfil da população moradora e removida dos dois quarteirões é de pessoas que trabalham, em muitos casos, de maneira informal, sem carteira assinada, de modo autônomo, e sem as documentações e registros do mercado formal de trabalho. Contudo, isso não é novidade para a concessionária nem para a prefeitura/Sehab. Nos levantamentos e diagnósticos realizados pela empresa terceirizada da prefeitura para o trabalho social na área, essa realidade e perfil socioeconômicos foram diagnosticados e ficaram evidentes.

Parte dos/as conselheiros/as eleitos/as representantes das entidades da sociedade civil atuantes no Conselho Gestor, formado e eleito pela prefeitura para discutir e aprovar as intervenções que atingiriam os quarteirões e as famílias moradoras e trabalhadoras da área, recorrentemente trazia esse fato para a discussão e questionava a prefeitura se essas pessoas com esse perfil seriam enquadradas para atendimento habitacional via PPP, e a resposta da prefeitura/Sehab era sempre evasiva e pouco concreta, mas assegurava que sim.

Cabe destacar que a última reunião do Conselho Gestor foi em julho de 2020. As remoções da população que morava e trabalhava nos dois quarteirões aconteceram no meio da pandemia, sobretudo em 2021, sem diálogo nem respeito com as famílias nem com o Conselho Gestor, desrespeitando inclusive orientações sanitárias e jurídicas.

Em conversas recentes com pessoas desclassificadas pela PPP, ouvimos que as razões apontadas para desclassificação, além das já mencionadas, passam também pela existência de empréstimos, dívidas, acordos realizados para quitar pagamentos (com ou sem descontos), tornando-se motivos para considerar o nome da pessoa com “prejuízo” ou com “nome sujo” no processo de análise. Pessoas desclassificadas relatam também que o “score” do Serasa é usado como critério de avaliação e de (des)classificação pela concessionária.

Há relatos de pessoas que ao tomar conhecimento em contatos telefônicos privados com a PPP de que estavam com “nome sujo” ou “score” baixo, às pressas, pegaram empréstimos para saldar dívidas ou empréstimos antigos para tentar melhorar sua pontuação. Muitas ouviram como resposta que seu “score” continuava igual mesmo com a quitação de dívidas antigas, o que algumas pessoas tentaram argumentar de que era preciso mais tempo até sua pontuação no Serasa ser atualizada. Mas muitas não tiveram esse tempo hábil oferecido pela concessionária e foram desclassificadas.

O que todas as pessoas reprovadas estão recebendo como informação da PPP é de que agora elas são “responsabilidade da Sehab”.

Emails enviados pela concessionária para moradores desclassificados

Por esta razão, algumas famílias se organizaram e decidiram ir pessoalmente até a Sehab no dia 28/02/2024, já que por ligação e atendimento virtual – que são as formas estabelecidas pela secretaria como possibilidade de atendimento para o público – não estavam recebendo nenhuma informação. O plantão social de atendimento presencial na Central da Habitação não existe mais, então com a intermediação de um conselheiro representante das entidades da sociedade civil, e depois de uma espera de duas horas, as famílias puderam ser atendidas por uma assistente social da Sehab.

As questões principais das famílias foram:

– Quais os motivos e critérios de sua desclassificação?

– O que significa, na prática, que agora eram “responsabilidade da Sehab”?

– Estando desclassificados, quais são os encaminhamentos previstos de atendimento habitacional – já que a opção que foi sempre alardeada pelo poder público (via PPP) não era mais uma possibilidade? Vão permanecer com Auxílio Aluguel (após as remoções, as famílias cadastradas passaram a receber o auxílio provisório até o atendimento definitivo)? Até quando? Correm risco de terem o Auxílio cortado? Vão para o “fim da fila” de atendimento habitacional? Vão ter algum atendimento prioritário?

Por parte da Sehab, até o momento não há nenhuma resposta para essas perguntas ou informações nesse sentido. Dizem que o processo de análise e os critérios de seleção são todos da concessionária, e que a CDHU, companhia ligada ao governo do Estado (e não à prefeitura), está à frente das negociações já que o acordo de PPP firmado no território foi uma parceria da prefeitura junto do governo do Estado de São Paulo com a concessionária privada. E, segundo eles, nem a PPP nem a CDHU teriam informado e repassado dados gerais e detalhes para a secretaria municipal.

A Sehab afirmou ainda que até o momento sabem apenas que 10 pessoas foram aprovadas, e não sabem dizer se esse é o número total ou se tem mais pessoas que serão aprovadas – uma moradora fez uma pergunta certeira: “a Sehab recebeu o nome de 10 pessoas que foram aprovadas, e as outras 180?! Não estranharam ou sentiram falta de mais nada?!”

A foto que abre este post é de uma placa que está nas habitações da PPP que foram construídas na área – aparece escrito “obra do governo do Estado” junto com o logo da prefeitura. A menção de “190 moradias” na placa é uma referência evidente ao número das 190 famílias que moravam nos quarteirões e foram cadastradas. A placa deixa entender e cria a ilusão de que todas elas serão atendidas e contempladas ali.

O que os fatos das últimas semanas têm mostrado é que isso é mais uma mentira e a utilização do número “190” no anúncio acaba ganhando requintes de crueldade com as famílias que foram removidas e que até então nutriam ainda a expectativa de que poderiam comprar seu apartamento na área. Nas ligações com a concessionária nas últimas semanas, muitas estão descobrindo que não serão. Uma funcionária da concessionária, inclusive, informou em uma chamada telefônica para uma das moradoras removidas e desclassificadas de que todos os apartamentos já estão direcionados e contemplados, não havendo chances de atendimento neles para quem for desclassificado.

A postura da Sehab diante do processo seletivo e de análise da PPP, dos critérios, aprovações e desclassificações, afirmando que a responsabilidade é da parceira privada, demonstra mais uma vez uma omissão. A posição de que a responsabilidade pela situação não é da prefeitura não pode servir de desculpa, até porque não se sustenta pelos fatos: quem cadastrou as famílias, removeu, demoliu, e ao longo de todo esse período prometeu atendimento – e que esse atendimento seria via PPP – foi o poder público.

Não dá para, neste momento, quando as famílias estão sendo desclassificadas do que foi prometido e recebendo como resposta da PPP que são “responsabilidade da Sehab”, o poder público afirmar que não sabe e nem tem informações do que aconteceu ou vai acontecer, como se o responsável pelas famílias não fosse ele mesmo.

Essa omissão e desresponsabilização é prejudicial inclusive para pessoas que conseguiram se classificar no processo de análise da concessionária para obter o financiamento de compra de um apartamento na área. Para citar um exemplo: uma família que foi removida dos quarteirões e, na semana passada, – com muita insistência e muito custo ao longo de todo o processo – recebeu a informação de que poderia finalmente adquirir um dos apartamentos. A surpresa veio na hora de assinar os contratos e termos, pois foi exigido, por parte da concessionária, o pagamento de uma série de taxas (Imposto sobre a Transmissão de Bens e Imóveis, taxa de registro, e taxa para Caixa) no valor total de R$ 8 mil (oito mil reais).

Ao longo das reuniões da Sehab com as famílias e no Conselho Gestor, foi repetido várias vezes que não seriam cobradas taxas das famílias removidas dos quarteirões na hora da compra, que todo o processo e tarifas seriam sociais. A família questionou a concessionária sobre esse alto valor, alegou que outras famílias aprovadas estariam pagando apenas a taxa para Caixa (no valor de R$ 300), querendo saber o porquê eles estavam pagando tão mais, que isso nunca havia sido dito que aconteceria, e que a promessa feita tinha sido o contrário. A resposta da funcionária da concessionária foi: “é isso ou volta para Sehab”.

Portanto, se a família não pagasse R$ 8 mil estaria desclassificada do processo e seu atendimento/demanda “voltaria” para Sehab. Com muito pouco tempo dado e para não perder o negócio, correram para levantar a quantia, pedindo emprestado para pessoas conhecidas o valor exigido.

Segundo ainda essa família, mesmo o valor das parcelas mensais que teriam que pagar é maior do que outras famílias removidas e aprovadas no processo de análise estariam pagando. Pelo que ficaram sabendo, as famílias aprovadas teriam parcelas em torno de R$ 600 a 750 para pagar, já as suas serão de R$ 1,2 mil mensais.

Segundo eles, um valor igual ou até mais alto do que se buscassem algum financiamento de empreendimento privado de compra da casa própria, sendo que por serem antigos moradores de uma área demarcada como Zona Especial de Interesse Social 3 (ZEIS-3), as moradias construídas em localidades como essa deveriam ser Habitação de Interesse Social (HIS), o que certamente não se enquadra com taxas de R$ 8 mil e parcelas mensais de R$ 1,2 mil. Inclusive, esse valor mensal compromete mais de um terço da renda mensal familiar total, o que os coloca em situação de insegurança habitacional.

Neste breve exemplo, tem-se uma família encurralada em uma negociação direta com a concessionária privada, sem intermediação alguma do poder público, em que todos os acordos anteriores feitos pela prefeitura/Sehab em conversas com as famílias e no Conselho Gestor ao longo dos anos não servem de nada. É a palavra da família contra a concessionária, que tem plenos poderes, são seus critérios de análise e seleção que valem, e ela desconhece e ignora tudo o que fora estabelecido e garantido anteriormente. É pegar ou largar. É pagar R$ 8 mil para não “voltar para Sehab”.

A omissão ativa do poder público no arranjo de PPP joga as famílias em uma “zona de exceção” onde as regras do jogo e o que fora acertado anteriormente ficam suspensos, param de valer, e passam a ser reescritos no tempo e ritmo – e valores – do agente privado. Nessa zona de indeterminação, o ente privado navega e domina com autonomia e autoridade, determinando quem entra (ou sai), o que precisa ser feito (e pago), e as famílias que se virem, sem ter para quem recorrer e como se proteger desse poder soberano, que parece não dar satisfação para ninguém.

A ocorrência e insistência no jogo de “empurra-empurra” (termos de uma moradora removida) entre a concessionária privada e o poder público foi e é recorrente ao longo de todo esse processo, em diversos casos envolvendo diferentes famílias e situações. Essa estratégia acaba gerando nas pessoas desgaste, apreensão, paralisia, e medo de, no fim das contas, perder o atendimento (seja o provisório, seja o definitivo, mesmo que em um futuro incerto, que ninguém sabe quando vai chegar), o que vai enfraquecendo tentativas de resistências (individuais e coletivas), forçando muitas a aceitar sem questionar imposições, abusos e pressões.

Todas as situações descritas ao longo deste texto acabam por revelar os modos de funcionamento e efeitos que a opacidade constituinte do arranjo das Parcerias Público-Privadas (PPPs) possui: a responsabilidade – quem é responsável e quem pode ser responsabilizado – se torna uma posição indeterminada e flexível, a depender do momento e da situação, flutua e se alterna, conforme os interesses e motivações de cada situação: ora é o poder público, ora o agente privado, ora ninguém.

O que parece sempre certo e definido é de quem é o prejuízo (das pessoas removidas, das que tem que se endividar, das que aguardam na incerteza das filas de espera…) e de quem é o lucro – aqui nunca há menor espaço para dúvidas, os parceiros privados não gostam de arriscar seus negócios e transações, o Estado que “dê seus pulos” para dar garantias, estabilidade, previsibilidade e retorno$ para o setor privado.

 

(*) Renato Abramowicz Santos é pesquisador do LabCidade e do Observatório de Remoções, e Janaína Fernandes dos Santos é trabalhadora autônoma, vende panos de prato na rua, é mãe solo de 2 filhas, e é moradora removida dos dois quarteirões de Campos Elíseos.