Por Isadora Marchi de Almeida e Aluízio Marino*

A parceria público-privada de habitação do município de São Paulo, conhecida como PPP Casa da Família, avança rapidamente para se tornar realidade. No mês de abril serão assinados os contratos com os grupos vencedores da licitação de seis dos doze lotes da PPP, correspondendo a 13.180 unidades habitacionais, em uma iniciativa que tem sido divulgada como um grande investimento privado para a produção de habitação de interesse social. O que a propaganda não mostra é que mais de três mil famílias serão removidas de suas casas para dar lugar aos empreendimentos, e esse número é subdimensionado, já que os estudos da PPP invisibilizam os domicílios  que terão que ser demolidos para dar lugar às novas moradias.

A este fato soma-se o de que não há nenhuma previsão de atendimento habitacional para aqueles que ganham menos de um salário mínimo. Críticas já vem sendo feitas ao fato de a prefeitura considerar como beneficiárias das novas moradias, ou seja, da habitação de interesse social, famílias que recebem quase R$ 6 mil reais mensais. Existe ainda a previsão de construir habitação para faixas de renda familiar de quase R$ 19 mil reais mensais com dinheiro público, já que o investimento privado inicial será retornado com juros ao longo dos anos.

A PPP habitacional municipal licitou doze lotes compostos por terrenos de propriedade pública localizados em várias áreas da cidade para a produção de empreendimentos que mesclam usos não-residenciais e residenciais. Cada lote da PPP é constituído por um conjunto de terrenos. Dos 12 lotes da licitação, seis tiveram licitantes – nenhum deles com concorrência real, já que houve apenas um interessado por lote. Todos os seis já tiveram sua documentação analisada, sendo habilitados para a assinatura do contrato que deve acontecer em breve.

Na PPP, o setor privado fica responsável por construir os empreendimentos habitacionais, infraestrutura pública, empreendimentos não-residenciais privados, equipamentos públicos e também pela oferta de serviços públicos pré e pós-ocupação. Já a prefeitura paga com dinheiro público, de maneira parcelada, os responsáveis pela construção. O edital prevê ainda a concessão da gestão condominial por um prazo de 20 anos e a exploração dos pontos comerciais no térreo dos edifícios para as empresas construtoras, sendo que a concessão destes pontos comerciais é prorrogável por mais 10 anos, o que na prática diversifica as formas de rentabilidade com a PPP.

Além da rentabilidade dos empreendimentos, questões diversas permanecem no ar. Por exemplo: como é possível a previsão de utilização de terrenos demarcados como ZEIS 3 para empreendimentos de logística? Como se dará a construção das unidades habitacionais para as quais não há a destinação de áreas específicas? Haverá remoções? Como será realizado o atendimento das famílias que serão removidas para a realização dos empreendimentos?

Já criticamos anteriormente o fato de que a PPP habitacional estava impulsionando a reintegração de posse de várias áreas ao longo do Córrego do Bispo, resultando na remoção de mais de duas mil famílias sem que uma alternativa de moradia para estas pessoas estivesse claramente configurada. Entretanto, este caso não é uma exceção: dos 12 lotes licitados nesta PPP, metade estão em terrenos nos quais há pessoas morando. Estas pessoas são invisibilizadas pelo processo, já que o edital raramente menciona a presença de moradores nos terrenos da licitação. Em nenhum momento informa quem são e quantas pessoas vivem em cada área, tampouco indica qual será o atendimento prestado a essas pessoas.

Lote 12 – Casa Verde – Cachoeirinha, Favelas do Sapo, Peri Alto e Futuro Melhor, ao longo do Córrego do Bispo. O edital da PPP não informa a quantidade de moradores nos perímetros demarcados, há ao menos 2410 famílias ameaçadas de remoção (fonte: GeoSampa, 2015).

Em uma das poucas menções ao fato de uma das áreas ser ocupada, é preocupante a forma como o edital sinaliza a possível forma de tratamento destas áreas. Ao apresentar o Lote 07 (Vila Maria – Vila Guilherme), o edital descreve que as “intervenções habitacionais servirão para erradicar a favela existente ao longo do Córrego do Violão”. Enquanto isso, todas as áreas atualmente vazias que também fazem parte do mesmo lote são ou podem ser destinadas a atividades de logística, justificadas no edital por serem áreas com “vocação” para tal uso.

Lote 07 – Vila Maria – Vila Guilherme, Favela do Violão e parcela do Jardim Guarani. O edital da PPP não informa a quantidade de moradores nos perímetros demarcados, mas há pelo menos 500 famílias ameaçadas de remoção (fonte: Geosampa, 2015).

 

Lote 10 – Guaianases, ocupação recente no bairro Jardim Vista Alegre, na zona leste da cidade de São Paulo. O edital da PPP não informa sobre moradores na área, o local não consta nas bases de mapeamento de favelas ou loteamentos irregulares, provavelmente a ocupação teve início em 2017 e não foram encontrados outros dados sobre o número de famílias ameaçadas.

Além do Lote 07 e do Lote 12, outros cinco lotes incluem ameaças de remoções: os lotes 03 e 04 (Ipiranga), 10 (Guaianases), 11 (Lapa) e 12 (Casa Verde – Vila Nova Cachoeirinha). Destes, os lotes 07, 11 e 12 tiveram empresas interessadas no processo de licitação

Parte do Lote 11 – Lapa, Favela Barão de Antonina, no bairro do Jaguaré. O edital da PPP não informa sobre moradores nos perímetros demarcados, e embora a favela esteja identificada no GeoSampa, não constam dados sobre a quantidade de domicílios.

 

O modelo de política habitacional escolhido pela prefeitura se propõe a remover, sem estabelecer as formas de atendimento, pelo menos 3.577 famílias de baixa renda e grande vulnerabilidade – podendo chegar a um número maior, já que boa parte das pessoas ameaçadas não foram mencionadas no processo – e deve continuar promovendo o ciclo de violência e expulsão desta população.

A prefeitura divulga que 71% dos recursos são para atender famílias que recebem até seis salários mínimos, o edital da PPP indica que 53,42% da produção de unidades será para HIS-1 (faixa de renda em torno de 0 a 3 salários mínimos) e 19,80% para HIS-2 (faixa de renda em torno de 3 a 6 salários mínimos). Apenas 8,55% da produção (cerca de 1.900 unidades das 22 mil previstas na fase de implantação) é voltada para atender famílias com renda mensal entre R$ 937,00 e R$ 1.000,00, sem previsão de atendimento para quem recebe menos do que um salário mínimo por mês. Outros 17,63% da produção (cerca de 3.900 unidades) visam atender famílias com renda mensal entre R$ 1.000,00 e R$1.800,00.

Existem, portanto, poucas unidades habitacionais destinadas para as faixas de renda mais baixas. Outra questão é que a forma de acesso principal da PPP é o modelo de financiamento, o que impede o acesso de boa parte da população mais vulnerável que não cumpre as exigências do mercado para buscar financiamentos.

A análise apresentada acima – somada a experiência da PPP Habitacional do Governo do Estado de São Paulo – mostra que o modelo de Parceria Público Privada não responde às necessidades mais urgentes de moradia. E o mais grave: o discurso da prefeitura e dos órgãos do Estado é de que esta é a única política possível. Para piorar, a construção desses empreendimentos acaba removendo mais famílias, pressionando ainda mais a situação de emergência habitacional.

O Mapeamento das Remoções, atualizado em 17 de abril de 2019, evidencia essa questão de maneira ampla. O mapa representa também os impactos promovidos por diferentes modelos de Parceria Público Privada, além das propriamente ditas PPPs: Projetos de Intervenção Urbanística (PIU), Operações Urbanas Consorciadas (OUC). Dando visibilidade para os múltiplos deslocamentos envolvidos nesses instrumentos de gestão urbana.

* Doutorando pela UFABC, mestranda na FAU-USP, pesquisadores do LabCidade.
Mapas & Cartografias: Aluízio Marino e Damany Eliotério dos Santos