Por Raquel Rolnik 

Desde 2017, na gestão do então prefeito João Dória, assistimos a uma tentativa de captura simbólica e material do bairro Bom Retiro, na região central de São Paulo, identificando e demarcando o bairro como “Korea Town”. A investida ganhou um aliado importante, o Consulado da República da Coreia, que tem feito um trabalho incansável junto à Prefeitura, Câmara Municipal, Assembleia Legislativa e aos órgãos de patrimônio, em todos os níveis, para viabilizar intervenções no espaço físico e em âmbito simbólico, demarcando a presença coreana ao mesmo tempo em que vão desaparecendo as demais presenças deste bairro que é essencialmente multicultural.

O bairro já conta com algumas intervenções nesta direção, como a mudança da denominação da Rua Prates para “Rua Prates – Coreia”, aprovada em março de 2022 (lei municipal  nº 17.760). Há dois anos, vereadores também buscam rebatizar a Rua Três Rios para “Seoul” (PL 609/2021), enquanto deputados estaduais atuam para alterar o nome da estação Tiradentes da Linha 1-Azul do Metrô para “Estação Tiradentes – Coreia do Sul” (PL 737/2021). A maior e mais ampla marcação pretendida, entretanto, é urbanística: com um urbanismo que imita uma suposta “rua coreana” – que provavelmente nem exista de verdade nas cidades sul-coreanas contemporâneas –, o Consulado propõe a instalação de luminárias típicas do país asiático e a pintura de murais pelo bairro.

Este conjunto de ações, contudo, encontra muitas resistências no interior da multiculturalidade que constitui o Bom Retiro. Evidentemente esse é um bairro que tem uma presença coreana que é muito importante e merece ser celebrada. Esse reconhecimento, contudo, não pode jamais apagar uma região que é lugar de múltiplos povos e cuja característica mais importante é, justamente, sua multiculturalidade: italianos, judeus, bolivianos, paraguaios, nordestinos e de vários estados do Brasil e outros povos que compõem a plurinacionalidade do bairro.

Nenhum destes é inteiramente passado, nem necessariamente hegemonicamente presente. A especificidade e riqueza cultural do Bom Retiro é justamente ser feito de ondas sucessivas que nunca desaparecem nem são completamente transformadas pelas seguintes. Por isso é muito importante não fixar a identidade coreana e transmutar o bairro em “Koreatown”.

O modo como avança esse projeto abre ainda uma discussão importante sobre o que está ocorrendo com os órgãos de patrimônio em São Paulo. O pedido de “iluminação diferenciada” feito pelo consulado, por exemplo, foi aprovado pelo presidente do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural  e Ambiental da Cidade de São Paulo (Conpresp) sem que fosse submetido aos conselheiros.

No Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do estado (Condephaat) algo ainda mais misterioso. Inicialmente, a maioria de seus membros recusaram o projeto de instalação a partir de um parecer técnico absolutamente contrário, mas, poucas semanas depois, a posição foi revertida sem qualquer possibilidade de contestação. Na contramão dos órgãos municipal e estadual, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) declarou ser contrário à iniciativa com base um Inventário de referência Culturais do Bom Retiro – Multiculturalismo em Situação Urbana. Concluído em 2009, o documento reconheceu no bairro mais de 200 referências culturais de diversos grupos sociais e nacionalidades.

Mas há, contudo, uma enorme pressão política sobre o Iphan para que ele mude este parecer e permita a transformação e a captura dessa diversidade por uma só etnia.

Nós já conhecemos a história da Liberdade, transformada em nipônica, que significou apagar todo o passado negro do próprio bairro. Uma questão que hoje é contestada com força. Por que repetir esse erro? Uma intervenção de melhoria do bairro deve acolher toda sua diversidade, ser construída com ela e, principalmente, enfrentar as questões básicas de saneamento, iluminação pública, moradia, entre outras presentes no bairro, ao invés de um urbanismo de maquiagem, que embora pareça divertido e inocente, traz consigo o apagamento de presenças, histórias e memórias.

Compartilho aqui um manifesto em defesa da identidade plural e mutante do Bom Retiro que assino embaixo e te convido a assinar também: https://docs.google.com/forms/d/e/1FAIpQLSebMMGm-tQMNZcZSyI71O6_kQyENTzmbdTo4D-YoIZBRHuUVg/viewform?fbzx=-3106985107711753460

 

(*) Raquel Rolnik é professora na FAUUSP e coordenadora do LabCidade