Por Aluízio Marino e Renato Abramowicz Santos

Há mais de um ano a prefeitura e o governo do Estado insistem na estratégia de dispersar as pessoas em situação de rua da chamada Cracolândia, no centro da cidade de São Paulo. São constantes as tentativas de mudar a concentração das cenas de uso, sempre de forma violenta e sem diálogo com a população. Para quem convive com essa situação está evidente que a estratégia da dispersão é fracassada para solucionar os problemas existentes. Ao contrário disso, os resultados dessa insistência são a violação de direitos de quem vive nas calçadas e a uma escalada de insegurança, piorando a vida de moradores, comerciantes e de todos que circulam pela região da Luz, Santa Ifigênia e Campos Elíseos.

Após uma tentativa frustrada de levar o fluxo para a rua Prates, no Bom Retiro, que gerou forte resistência da população local, o poder público ensaiou uma nova manobra: nos dias 07 e 08 de novembro o fluxo foi deslocado para a rua Mauá, na altura da estação da Luz. Esse deslocamento, que acontece no período noturno, é conduzido pela IOPE (Inspetoria Regional de Operações Especiais), espécie de Rota da GCM (Guarda Civil Metropolitana). Durante a manhã e tarde o fluxo está concentrado, nos últimos quatro meses, na esquina da rua dos Protestantes com a rua dos Gusmões.

A mudança da cena de uso noturna da Cracolândia é, provavelmente, resultado do desgaste do poder público com os moradores da Santa Efigênia, entre eles, os moradores dos dois conjuntos da PPP habitacional que convivem com o fluxo em sua porta há pelo menos um ano. Esse jogo de “empurra-empurra” faz com que os próprios moradores tenham que tomar a iniciativa: foi o caso da ocupação Mauá, que, – após duas noites de transtornos com dificuldades para dormir, acessar suas residências e com agentes da GCM interrogando e interditando sua livre circulação nas imediações de onde vivem desde 2007 –, organizaram uma barreira humana, impedindo que o fluxo ali se concentrasse.

Um cordão humano, à primeira vista, remete a uma iniciativa de expulsar e rejeitar a presença de pessoas “indesejáveis”, mas a condução consciente da ação impediu que o conflito estourasse, tomando proporções imprevisíveis. No momento de maior tensão, quando o fluxo e os moradores ficaram frente a frente, a liderança da ocupação, firme e rapidamente, fez uma fala para alertar que as pessoas em situação de rua não eram os inimigos, mas sim o poder público que causa essa desordem. Em posse de um megafone, a liderança lembrou a todos ali presentes: “Essas pessoas em situação de rua e drogadição não são nossos inimigos! Nosso inimigo é o sistema, que fica colocando o povo contra o povo”.

A situação limite vivenciada na semana passada é evidência e resultado de uma política que aposta no conflito. A prefeitura e o governo do estado de São Paulo são responsáveis por essa situação, quando o único recurso e estratégia empregados são a violência na dispersão e deslocamento incessante das cenas de uso, sem garantir uma estrutura adequada de cuidado e apoio. Entretanto, os mesmos afirmam que não tem culpa nem controle da situação, pois os usuários se movimentam de forma espontânea.

Porém, ao se desresponsabilizar, jogam para os indivíduos a responsabilidade de lidar com o problema. A Mauá é uma ocupação organizada e politizada, com grande capacidade de articulação. Com destemor e astúcia, evitaram transformar o território em uma praça de guerra. Agora quem garante que em outros momentos, quando moradores de outros lugares forem também tentar o mesmo, a coisa não vai explodir? E se alguém resolver usar uma arma para garantir a “proteção”? Essa forma do poder público agir cria caos e abre brecha para a violência (do Estado e privada) ser a única “solução” e forma para lidar com a situação, o que já tem gerado, por exemplo, um aumento significativo de grupos de segurança privados no território, parte deles ligados a agentes de segurança pública.

Os moradores da Mauá alcançaram seu objetivo sem machucar ninguém e ainda com um discurso importante de conscientização da população sobre os verdadeiros responsáveis. Inclusive quando a GCM “veio buscar o fluxo de volta” diante da barreira da Mauá, parcela dos usuários chegaram a agradecer a mobilização da Mauá, enquanto os moradores gritavam em celebração “Quem não luta, tá morto”. As imagens dos moradores da ocupação, junto com dezenas de crianças que moram lá, ocupando a rua que eles próprios interditaram com cadeiras, conversas e brincadeiras revelam a todos que outras políticas de segurança e para a cidade, fora do regime exclusivo da violência e da violação de direitos, podem ser pensadas e construídas.

Mas enquanto isso o conflito permanece e ele é provocado pela insistência em deslocar as pessoas, sem respeito, de forma constante e sem nenhum diálogo (seja com o fluxo, seja com quem vive no entorno). O gari que passou ao lado gritou: “Fogo na babilônia! Alguém tem uma granada aí? Só assim que acaba com esses nóias!”. Logo que foi embora, surgiu uma senhora com câmera na mão, e filmando a situação afirmou: “Já estou mandando essas imagens para Rede Globo e Record, faço parte do Conseg [Conselho Comunitário de Segurança] e também estou chamando os lojistas do Bom Retiro para ajudar o pessoal da ocupação”.

A ajuda não chegou, o que circula são as imagens, a desconfiança, o medo, a raiva, separando e colocando todos contra todos. Já está evidente que esta é a aposta política do poder público. É preciso avançar e fortalecer a conversa e as práticas que buscam construir e respeitar espaços e direitos, dos indivíduos e coletivos.

 

(*) Aluízio Marino é pós doutorando pela FAUUSP e coordenador do LabCidade e Renato Abramowicz Santos é doutorando pela FFCLCH – USP e pesquisador do LabCidade.