Início das demolições das casas por volta das 10h da manhã, ao lado do campinho situado na intersecção entre as Favelas do Monte, da Mata e Futuro Melhor . Fonte: acervo das autoras, LabCidade, maio de 2019.

Por Débora Ungaretti e Larissa Lacerda*

A segunda-feira, 6 de maio de 2019, começou bem cedo para as mais de 500 famílias remanescentes do processo de remoção na área do Córrego do Bispo, no Peri Alto, Zona Norte, uma das favelas mais precárias da capital. O processo é resultado de uma Ação Civil Pública promovida pelo Ministério Público contra a Prefeitura de São Paulo cobrando sua atuação para garantir a segurança das famílias, já que a área é demarcada como R4, ou seja, a de mais alta suscetibilidade a acidentes geotécnicos. A demarcação como R4 foi feita sobre uma área de 2,4 km, atingindo cerca de 2 mil famílias. A Ação Civil Pública foi instaurada em novembro de 2018 e a resposta do Executivo foi marcar a remoção para 21 de dezembro do mesmo ano, sem que a prefeitura tivesse realizado nenhum cadastramento e atendimento das famílias, como já tratamos anteriormente.

As quatro favelas do entorno do Córrego do Bispo começaram a ser formadas a partir da década de 1980, conforme informações da Secretaria Municipal de Habitação disponíveis no GeoSampa. Segundo relatos de moradores, em 1996, 150 famílias organizadas na Associação Comunitária das Mulheres Guerreiras do Jardim Vista Alegre, que não foram contempladas no programa de autogestão da prefeitura à época, ocuparam a área denominada de Futuro Melhor, nas margens do córrego. Na mesma década, surge a Favela do Sapo. Relatos dos moradores contam que na década de 2000 surgiu a favela da Mata, que foi se adensando até a área da Favela do Monte.

Em 2018, frente a ameaça relâmpago de remoção, a mobilização dos moradores conseguiu acionar uma grande rede de apoiadores e resultou em uma decisão judicial que condicionou a saída das famílias ao seu cadastramento pela Secretaria Municipal de Habitação (SEHAB), o que aconteceu a partir de janeiro de 2019. O atendimento habitacional oferecido: auxílio-aluguel de 400 reais por 12 meses, renováveis por mais 12 (nos termos da Portaria 131/2015), sem qualquer vínculo a um projeto de atendimento definitivo. Ao longo de quatro meses, e conforme recebiam o auxílio, mil e cem famílias deixaram suas casas.

O prazo para a saída “voluntária” se encerrou neste 06 de maio, independentemente de as famílias terem sido totalmente contempladas pelo auxílio. Das 500 famílias que até então estavam vivendo no local, muitas delas ainda não obtiveram resposta da Prefeitura quanto à sua documentação. Outras tiveram o auxílio negado. Segundo informações da Prefeitura Regional da Casa Verde e Cachoeirinha, o indeferimento se deu por insuficiência de documentos, por ultrapassarem o limite de renda para recebimento do auxílio, ou por já terem sido contempladas por algum programa habitacional em algum momento na vida. Durante toda a manhã, no entanto, problemas no cadastramento davam a tônica a reclamações. Diversas pessoas relataram não ter recebido o auxílio-aluguel por motivos variados: demora na análise do cadastro e da documentação pela prefeitura, pela falta de um documento ou algum outro motivo desconhecido. Para boa parte dessas pessoas, o valor do auxílio-aluguel é essencial para viabilizar a mudança para um novo endereço. Sem ele, várias delas afirmavam que teriam que ir para a rua.

Às 8h da manhã, entre muitas casas vazias, animais abandonados e escombros deixados para trás, algumas famílias corriam para tirar suas coisas antes da chegada da máquina que colocaria tudo abaixo.

I – As diferentes faces da remoção

Mãe de seis crianças, Juliana (todos os nomes são fictícios) insistia por mais um dia para empacotar seus pertences e procurar um local para se abrigar. Contou que cuida das crianças enquanto o marido trabalha como auxiliar de limpeza noturno, recebe um salário-mínimo, insuficiente para dar entrada de três meses em um contrato de aluguel. Além disso, estavam encontrando problemas com proprietários que não aceitam fechar negócio por conta do número de crianças. Desesperada, admitiu que iria procurar uma casa vazia para entrar e morar, pois se recusa a levar as crianças para a rua. A alternativa encontrada pela Defensoria Pública foi uma vaga para família em um abrigo da prefeitura em outra região de São Paulo.

Um jovem que aparentava ter 16 anos soltava pipa do alto de seu barraco, à beira do córrego e em frente aos escombros da Favela da Mata. Contou que não havia esvaziado seu barraco, onde morava com o seu pai, porque não tiveram resposta da prefeitura da análise de seu cadastro e, sem o dinheiro do auxílio, ele e seu pai não tinham para onde ir, tampouco para onde levar os móveis, e portanto o único destino possível era a rua.

Um outro jovem se abateu diante da situação e desistiu de tirar boa parte de seus pertences de dentro da casa. Quando a máquina começou a derrubar a construção, seus vizinhos começaram eles mesmos a tirar microondas, televisão, mesas e outros móveis da casa, enquanto buscavam um lugar para guardar as coisas do rapaz, que também não tinha para onde ir. Próximo à sua antiga casa, ele observava seus vizinhos ao lado de uma mochila e uma mala de mão, as únicas coisas que carregava.

Flávia nos contou que já tinha conseguido receber o auxílio-aluguel, o que a permitiu alugar uma casa na região, no Peri Alto. No entanto, o valor do auxílio de R$ 400 não é suficiente para pagar o novo aluguel de R$ 700. Por conta disso, já estava aventando outras possibilidades de moradia. Uma outra senhora mobilizou a filha, a neta e toda a vizinhança para encontrar um destino para seus seis gatos. Estava recebendo o auxílio e havia encontrado uma casa para alugar. No entanto, o proprietário de sua nova casa não aceita animais de estimação, obrigando-a a deixá-los para trás. Emocionou-se quando Dona Nilda, moradora de uma área da Futuro Melhor não atingida pela remoção, vendo a agonia da vizinha, decidiu adotar os gatos. Mas os moradores chamavam atenção para a grande quantidade de gatos e cachorros que estavam ficando para trás.     

Cachorro abandonado em meio a escombros na Favela da Mata. Fonte: acervo das autoras, LabCidade, maio de 2019.

Moradores relataram o surgimento de três novas ocupações no entorno em decorrência da remoção do Córrego do Bispo. Esse ciclo remoção-ocupações-remoção tem sido comum em vários territórios que acompanhamos, ilustrando a perversidade de processos de remoção que reproduzem as precariedades que afirmam combater.

Quantas dessas famílias removidas do Córrego do Bispo não estarão, em pouco tempo, ocupando outras áreas de risco? Enquanto as causas da emergência habitacional na cidade de São Paulo não forem enfrentadas, casos como esse vão continuar se reproduzindo, marcando os deslocamentos forçados constantes e a precariedade como trajetória de milhares de famílias.

Favela da Mata. Fonte: acervo das autoras, LabCidade, maio de 2019

II – Nova ameaça às famílias do Córrego do Bispo

Segundo informações levantadas pelo Observatório de Remoções, entre janeiro de 2017 e março de 2019, 22 mil famílias foram removidas e 157 mil famílias estão ameaçadas em toda região metropolitana de São Paulo. Diante desse cenário, a principal aposta do poder público municipal tem sido viabilizar a produção de moradias por meio de parcerias público-privadas. A chamada PPP Casa da Família vai na contramão de uma solução do cenário de emergência habitacional, conforme já expusemos anteriormente.

Um dos lotes que compõem o edital da PPP Casa da Família está localizado exatamente no mesmo local de onde as famílias foram removidas na segunda-feira, ampliando ainda mais o número de famílias atingidas em um novo processo de remoção. A parceria prevê a remoção de milhares de pessoas, sem previsão de atendimento nos empreendimentos que serão construídos. Mesmo que houvesse previsão de atendimento, o número de unidades e a faixa de renda estabelecida pelo edital da PPP não correspondem ao número de famílias que serão atingidas e as diferentes condições socioeconômicas em que se encontram.

Ainda assim, as famílias que serão removidas em decorrência da PPP terão mais direitos do que aquelas 1478 que ficaram sem abrigo nos últimos meses, já que terão direito ao auxílio-aluguel por prazo indefinido, até o atendimento habitacional definitivo, conforme previsto na  Portaria 131/2015. A provisão habitacional por meio de parcerias público-privadas é uma política recente em São Paulo – declarada, aliás, como única alternativa pela Prefeitura. No entanto, este caso, e também o da PPP Habitacional do Governo do Estado de São Paulo na área central da cidade, que vem sendo acompanhado de perto pelo LabCidade, aponta para a inadequação deste modelo para atendimento justamente de quem mais precisa.  

Ameaças de remoção por conta da PPP Habitacional no Córrego do Bispo. Fonte: Aluízio Marino, LabCidade, 2019.

* Doutorandas na FAU-USP e FFLCH, pesquisadoras do LabCidade