A Palestina é resistência e Valéria também. Fonte: Acervo do grupo de estudos Margear. Autoria de Zara Rodrigues, 2020. In: CORDEIRO et al., 2021.


Paula Freire Santoro, Rossana Brandão Tavares, Diana Helene e Gabriela Leandro Pereira*

Este texto é um recorte do artigo do editorial da RBEUR, escrito pelas mesmas autoras, apresentando os trabalhos que compõem a revista.

Neste terceiro post que traz o conteúdo do dossiê “Território, Gênero e Interseccionalidades” da Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais (RBEUR) (ver editorial), discorremos sobre o terceiro bloco de textos do dossiê, que reuniu quatro leituras, muito diversas, dos processos de despossessão mobilizados por diversas violências urbanas inter-relacionadaspública/estatal/governamental, financeira, imobiliária, doméstica –, que se dão em torno da moradia e do urbano. Os artigos procuram compreender as múltiplas dimensões dos processos de despossessão que envolvem, mas não se encerram na perda da moradia, e que não podem ser lidos de forma abstrata, e aqui ganham abordagem generificada e racializada.

O primeiro texto do bloco, da Poliana Gonçalves Monteiro, “A Guerra dos Homens e a Vida das Mulheres: As interfaces entre planejamento urbano, violência contra a mulher e segurança pública no Rio de Janeiro/Brasil”, procura compreender estas violências nos estudos urbanos como uma ruptura forçada das rotinas consideradas essenciais para a produção e reprodução do capitalismo racista e patriarcal. São violências que acontecem a partir das ausências estratégicas, presença precarizada e violenta do Estado e pela presença ostensiva dos poderes paraestatais – sejam eles milícia, tráfico, ou outros regimes de controle dos “territórios da pobreza”. Usa a metáfora da “cidade em guerra” para mostrar que os efeitos da sociabilidade violenta incidem sobre as mulheres – mães solo são culpabilizadas, mulheres “tombam”, sofrem feminicídio e vivem uma rotina violenta –, mas não são visíveis aos que desenham políticas, em uma espécie de sexismo institucional. Dialogando com Keisha-Khan Perry, pergunta: “Como seria nosso foco na justiça social na cidade se generificássemos e racializássemos a conversa?” (…) “Como seria nossa pesquisa urbana se prestássemos mais atenção às mulheres – suas vidas, seus pensamentos, seus desafios políticos contínuos contra projetos raciais de gênero de exclusão espacial e genocídio?”.

O segundo artigo, de Natália Alves, “Uma Izidora e duas Rosas: notas para uma perspectiva feminista negra do espaço”, discute a produção do espaço protagonizada por mulheres negras em três tempos distintos sobre a região da Izidora, Vetor Norte de Belo Horizonte. Utiliza narrativas destas mulheres como método para mostrar um processo lento de despossessão dos territórios negros do Quilombo de Mangueiras até a Operação Urbana do Isidoro, frente de expansão imobiliária da cidade. Conecta quilombo, conjunto habitacional, ocupação, ao sintetizar perspectivas de vida e luta da população e das mulheres negras neste território, redimensionando os legados de Izidora e Rosa Leão, em um futuro em disputa.

Estes “territórios negros” são lidos a partir da ideia que as geografias negras são locais suscetíveis à despossessão, racializando o debate sobre despossessão. Natália Alves revisita o conceito de “acumulação por despossessão” do David Harvey, procurando compreendê-lo não como um fenômeno abstrato, mas visto a partir de uma lente interseccional que procura relacionar despossessão e racialidade.

O texto está inserido nos trabalhos que observam a expropriação dos corpos racializados, e também generificados, alinhando-se com um conjunto de reflexões que enxergaram o corpo das mulheres como “colônias” (expressão utilizada por Maria Mies) ou “territórios de saqueio dos quais se extrai riqueza por meio da violência” (expressão de Verónica Gago). Estes inserem uma “alcunha na literatura sobre despossessão que, ao não qualificar quem é despossuído, deixou de fora as formas de exploração coloniais e patriarcais, invisibilizadas pelas categorias ‘capitalista’ ou ‘neoliberal’, quando não combinadas à outras estruturas de opressão”, como propõe Larissa Lacerda e outras autoras (2021, p. 159).

Atualmente, leituras feministas sobre o endividamento politizam o problema financeiro como extração, sob o lema “desendividadas nos queremos!” do Coletivo NiUnaMenos. Articulam formas de exploração e extração de valor que têm na financeirização da vida social – e em particular, através do dispositivo da dívida – seu “código comum” (expressão de Verónica Gago e Luci Cavallero). O terceiro artigo está neste grupo, intitulado “Generificando a pesquisa sobre endividamento imobiliário: primeiros desafios” de Flávia Elaine da Silva Martins e Ana Clara Guedes, que revela o endividamento imobiliário urbano no Brasil – como principal forma de acesso à moradia, que cresce em volume de crédito e também em inadimplência, transformando crédito em dívida –, e traça uma geografia deste endividamento, procurando dar corpo aos indivíduos endividados. Como método, fazem uma leitura dos editais de leilões de imóveis da CAIXA em São Paulo e no Rio de Janeiro.

O endividamento pode ser lido dentro de um contexto de várias políticas de inclusão a partir da financeirização da vida, onde a produção de direitos (aqui os da moradia) passa por uma mediação financeira, por contrair um financiamento. É capaz de impor novos ritmos de exploração ao trabalhador, e é também generificado e racializado.

As autoras refletem sobre a vulnerabilidade da mulher endividada, o papel da casa diante do endividamento, e as dinâmicas de opressão e violência a que ficam submetidas, reacendendo relações de subordinação e processos de expulsão silenciada e explícita, com a retomada de imóveis e o despejo dos moradores. O endividamento é compreendido então como processo de “violência financeira” cuja gestão da dívida, as obrigações financeiras, fazem com que os vínculos se tornem mais frágeis e precários ao estarem submetidos à pressão da dívida, que levam à “responsabilidade individual, incremento das violências chamadas ‘domésticas’, maior precarização das existências.

Ainda neste bloco, o quarto artigo, escrito por Raquel Ludermir e Flavio de Souza, intitulado “Moradia, patrimônio e sobrevivência: dilemas explícitos e silenciados em contextos de violência doméstica contra a mulher”, explicita as intersecções entre violência doméstica e moradia, mostrando que a violência doméstica não é um problema privado e sim público, urbano: atinge uma em cada três mulheres no mundo, tem raízes nas formas de opressão estruturais de gênero, patriarcais.

O artigo, muito inspirado na tese de doutorado da Raquel Ludermir Bernardino, observa as trajetórias de moradia de 56 mulheres de baixa renda no Recife que sofreram violência doméstica, que chama de “sobreviventes”. Traz trechos coloquiais dos relatos, que chama de “equívocos de propriedade”, traduzidos por expressões “dono é quem paga”, “o que é seu é meu”, etc., que superestimam a contribuição dos homens e minimizam a das mulheres nas estratégias de moradia e sobrevivência das famílias. Constata que a grande maioria das mulheres acaba saindo de casa para escapar das violências, em processos de despejo constantes e cíclicos, que as obriga a recorrer à casa de familiares ou amigos, ou mesmo arcar com custos de aluguel elevado, situações que Raquel chama na tese de “despejo relacionado à violência doméstica”. Ainda, expõe contradições nos programas habitacionais e de regularização fundiária que podem silenciar, mesmo quando alegam empoderar, as mulheres. Seu texto mostra que o reacender da família como estrutura possível para se habitar, traz de volta a conexão aos mandatos e hierarquias de gênero sobre a reprodução social, e as mulheres seguem remoralizadas e sofrendo diferentes formas de opressão e violências no lar, que de doce não tem nada.

*Paula Freire Santoro é arquiteta urbanista, Profa. Dra. da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo (FAUUSP) e co-coordenadora do LabCidade. Desde 2014 coordena a pesquisa “Cidade, gênero e interseccionalidades”, com o objetivo de subsidiar a reflexão crítica sobre formas de planejamento urbano, introduzindo conceitos, teorias e práticas generificadas, racializadas, interseccionalizadas na leitura, análise e proposta de transformação do território.

Rossana Brandão Tavares é professora adjunta da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense e do PPGAU/UFF. Coordena o projeto de pesquisa “Práticas Espaciais Generificadas e Conflitos Urbanos e Socioambientais” com investigações sobre corpo, espaço, vida cotidiana, reprodução social, precariedade, resistências, políticas urbanas, assim como, perspectivas teórico-metodológicas na arquitetura e urbanismo a partir das teorias feministas e queer.

Diana Helene é professora adjunta da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Alagoas e da pós-graduação em Tecnologia para o Desenvolvimento Social da UFRJ. Desde 2004, atua junto a movimentos sociais de mulheres, moradia e trabalho, coordena projetos de pesquisa sob o tema da interseccionalidade e é autora do livro “Mulheres, direito à cidade e estigmas de gênero: a segregação urbana da prostituição em Campinas”, debatido neste podcast do LabCidade.

Gabriela Leandro Pereira é professora adjunta da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia e do PPGAU/UFBA. É integrante do Grupo de Pesquisa Lugar Comum (PPGAU/FAUFBA) e coordenadora do Grupo de Estudos Corpo, Discurso e Território (FAUFBA). Publicou em 2019 o livro “Corpo, discurso e território: Cidade em disputa nas dobras da narrativa de Carolina Maria de Jesus”, adaptação da tese. Atualmente coordena a pesquisa “Narrativas e cartografias da presença negra nas cidades”.