Folhapress

Por Raquel Rolnik *

Nas últimas semanas o condomínio no qual vive Bolsonaro voltou às páginas dos jornais. Desta vez na figura de seu porteiro e as tramas que o envolvem nas interrogações que cercam o assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ). Aqui quero chamar a atenção sobre o próprio condomínio, “Vivendas da Barra”, que me parece uma expressão eloquente do que é o novo poder urbano em nosso país.

A forma condomínio diz respeito a um conjunto de casas em área murada e protegida por um aparato de segurança. Conta com espaços de uso coletivo – tais como ruas e praças –  e por vezes equipamentos de lazer de propriedade privada, uso exclusivo para quem ali reside. Surgiu nos subúrbios norte-americanos no início da década de 1960 e já na década seguinte se expandiu para países da América Latina, inclusive o Brasil, como uma verdadeira febre.

Na década de 1980, em plena crise econômica, desemprego e ruína dos sistemas financeiros imobiliários, se expandiu enormemente ao oferecer um produto acessível para as classes médias, porque situado nas periferias das áreas mais valorizadas da cidade, mas marcado pelos signos da exclusividade, distinção e segurança. Assim como o shopping center – aliás, seu primo-irmão destinado a usos comerciais e culturais – o condomínio oferece a possibilidade de não ter que compartilhar as dimensões coletivas da vida urbana com o outro, seja ele o pobre, o preto, o morador de rua, o sem-teto. Arquitetados pelo complexo industrial e cultural do medo, os condomínios se parecem muito com as bolhas da internet no espaço virtual: ignoramos este outro, a quem basicamente odiamos e de quem temos que nos defender.

Um dos primeiros condomínios implantados na Barra da Tijuca, o Vivendas da Barra está localizado numa região que hoje é uma das principais frentes de expansão da zona sul do Rio de Janeiro. E, embora ocupado por condomínios e shoppings, não tem implantados os sistemas de água e esgoto. Assim, nesta região marcada pela presença de lagoas e canais que se comunicam com o mar, o esgoto não tratado polui os canais e por vezes, com as marés, invade o mar.

Para reverter esse problema, apenas na última década começou a ser implantada a rede de coleta e tratamento de esgoto da região. Porém, no caso do setor onde está situado o Vivendas da Barra, metade das residências ainda não usufrui dessa infraestrutura, conforme aponta o IBGE. Com saneamento precário, este e outros condomínios da região também sofrem problemas sérios de drenagem.

Em momentos de chuvas fortes, o local é invadido pelas águas – e nos gramados bacanas formam-se poças de lama. Como o terreno fica bem abaixo da Avenida Lúcio Costa, a água da chuva, principalmente quando a tempestade vem do mar em direção ao continente, entra como um rio e forma uma espécie de cachoeira na principal via de acesso às casas, rumo ao canal de Marapendi, situado no limite dos fundos.

Com patente precariedade urbanística – aliás a própria figura do condomínio é ilegal, por não existir na lei que rege os parcelamentos do solo no país – é morada de um traficante, um miliciano, um envolvido na Lava Jato e um presidente da República. Essa nos parece uma bela expressão das novas configurações do poder urbano, na qual reina a ilegalidade como negócio e se privatiza o que é público sem cessar, pouco importando os rios, as lagunas e o mar. Contra a solidariedade e a defesa dos bens comuns, identificados como “marxismo cultural”, a palavra de ordem é construir para si castelos e acumular. Era contra este mundo e contra este poder que Marielle lutava. Por isso foi assassinada.

* Professora da FAU-USP e coordenadora do LabCidade. Coluna originalmente publicada no UOL.