Por Raquel Rolnik

Estive recentemente em Xangai, na China, e fiquei impressionada com as transformações urbanas que presenciei. Não é a primeira vez que estive na cidade; há 25 anos, testemunhei uma Xangai em pleno processo de mudança da forma de crescimento, já tendo iniciado as reformas na gestão das cidades e as relações com o mercado. Mas o que vi agora é algo completamente diferente.

A cidade se transformou de maneira radical, tendo implementado simultaneamente uma extensa rede de metrô que passou de uma única estação, em 1993, quando foi inaugurada a primeira linha, para 772 quilômetros e 459 estações. Ao mesmo tempo em que houve um investimento massivo no metrô, que tem uma tarifa altamente subsidiada – o “bilhete único” chinês custa aproximadamente R$ 1,50.

Outra aposta chinesa foi o uso de automóveis que levou à implantação de uma extensão malha de vias expressas, em boa parte elevadas, que conectam toda a metrópole articulando novos bairros e áreas de expansão com grandes operações de transformação urbanística da antiga Xangai.

Ambas redes estiveram associadas a um planejamento urbano voltado para a expansão demográfica e territorial, considerando e tendo como ponto de partida a gigantesca migração campo/cidade que levou para Xangai, e outras cidades chinesas, milhões de novos residentes em poucos anos. Xangai passou de 11,8 milhões de pessoas, em 1982, para 16,4 milhões, em 2000 e, 24,25 milhões, em 2014.

O que mais me intrigou, contudo, foi entender como esse processo foi financiado e organizado. Na China, onde toda a terra é pública, o modelo utilizado foi o de conceder para os municípios o poder de gestão das terras sob seu perímetro. Os municípios por sua vez promoveram leilões de arrendamento (leasing) dessas terras, permitindo que o setor privado comprasse o direito de investir e vender seus empreendimentos ali.

O detalhe é que aquilo que o privado poderia implantar estava pré-definido e desenhado nos planos centralizados de expansão elaborados pelo setor de planejamento das cidades, que também definiu como se daria a expansão da infraestrutura e as implantaram, inclusive com os recursos advindos destes leilões. Essa operação não só gerou recursos para as prefeituras, mas também garantiu um controle rigoroso sobre o desenvolvimento urbano, assegurando que as diretrizes do planejamento fossem seguidas à risca.

Esse modelo se mostrou extremamente eficaz durante um período de grande demanda por expansão urbana, impulsionado pelo êxodo rural e a necessidade de criar novas áreas urbanas rapidamente. Mas o cenário atual, porém, é muito diferente. A China enfrenta agora uma crise nesse modelo de desenvolvimento urbano e isso por duas razões principais.

A primeira, a migração para as cidades diminuiu drasticamente. A política do filho único, junto com o aumento das oportunidades de renda no campo e a integração das áreas rurais, reduziu significativamente a pressão por expansão urbana. Segundo, os grandes investidores, tanto chineses quanto estrangeiros, estão enfrentando dificuldades para vender seus empreendimentos. Muitos desses incorporadores, chineses ou estrangeiros, agora enfrentam crises financeiras, incapazes de pagar os empréstimos que financiaram sua expansão.

Um exemplo claro disso é a falência de uma das maiores incorporadoras imobiliárias da China, a Evergrande, um sinal alarmante de que o modelo vigente não é mais sustentável.

Além da crise do modelo de expansão e financiamento, Xangai e outras cidades chinesas enfrentam a crise climática, que questiona fortemente o próprio modelo urbanístico que adotaram ao longo das últimas décadas de expansão acelerada e transformação urbanística.

Mais uma vez a China se prepara para a mudança de matriz energética e reorganização da gestão hídrica. Já tem sido comentado como tem investido na reorganização das frentes de água – rios e mar – incorporando soluções baseadas na natureza, revegetando e adotando outros modelos de mobilidade como as ciclovias.

Porém, a grande questão que se coloca agora é como a China lidará com essa situação do ponto de vista financeiro, especialmente em um momento em que as condições que sustentaram o modelo anterior de expansão urbana mudaram tão drasticamente.

 

(*) Raquel Rolnik é professora na FAUUSP e coordenadora do LabCidade