Foto: Alderon Costa, Rede Rua.

Kelseny Medeiros Pinho, Luiz Tokuzi Kohara, Bruna Cespedes, Larissa França Ferraz* 

Muito se discute acerca dos impactos desiguais da pandemia de coronavírus em populações vulneráveis. Entre os grupos em evidência pelo risco, a população em situação de rua, marcada pelas condições extremas de pobreza, anuncia-se como um dos grupos prioritários, alvo de mobilizações, iniciativas diversas e demandas da sociedade civil. Afinal, como se proteger de um vírus, cujo potencial de contágio demanda o isolamento social e condições básicas de higiene, quando se tem como realidade a moradia nas ruas ou em abrigos superlotados, além da falta de acesso a itens ainda mais básicos à sobrevivência cotidiana, tais como alimentação e água potável? Os movimentos e entidades engajados com essa pauta apontam o uso dos hotéis como uma alternativa viável, rápida e eficaz no combate à pandemia para as pessoas que enfrentam essa realidade.

A população em situação de rua é grupo heterogêneo em sua composição, formado por homens, mulheres, famílias, idosos, LGBTQ+, crianças e adolescentes, que apontam, também, diversos motivos para terem chegado às ruas: o desemprego, a perda da moradia, o rompimento de vínculos familiares, a violência, questões de saúde, entre outros. Em comum, esse grupo heterogêneo tem um processo de perdas diversas que os leva às ruas ou à constante iminência de retornar para elas, o local onde encontram diversas violações de direitos fundamentais, que os caracteriza como grupo social.

Essa população cresceu exponencialmente nos últimos anos. O Cadastro Único do Governo Federal, em março de 2020, identificava 149.144 pessoas em situação de rua no Brasil. Se o número de pessoas em situação de rua formasse uma cidade estaria entre as 200 maiores do Brasil. O Censo Municipal de São Paulo conta com dados mais recentes e dimensiona esse crescimento, apresentando um aumento de mais de 50% de pessoas em situação de rua entre 2015 e 2019 (um total de 24.344 pessoas). Ou seja, a população em situação de rua cresceu mais rápido do que a população em geral da cidade. Há também um crescimento do número de idosos nessa população, alta incidência de doenças respiratórias (asma, tuberculose, bronquite) e outras doenças crônicas, como hipertensão, diabetes e doenças cardíacas.

Esse é o cenário que recebe a pandemia do novo coronavírus.Somado à dificuldade de realizar diagnósticos e ofertar tratamento em estágios iniciais, aponta para a letalidade do COVID-19 como uma tragédia sem precedentes para a população em situação de rua. Embora o quadro seja ainda incerto, estudos sobre essa população apontam que os índices de mortalidade em pessoas em situação de rua chegam a ser de  5 a 10 vezes maiores do que na população em geral.

Quando se avalia a principal resposta em termos de política pública historicamente ofertada à população em situação de rua, o acolhimento coletivo institucionalizado em centros de acolhida, chega-se a um impasse fundamental no enfrentamento da pandemia: como proteger essa população quando sua principal forma de acolhimento favorece o contágio pela COVID-19? Esta modalidade de abrigo, que impede o isolamento e gera aglomeração como premissa de seu funcionamento (banheiros, refeitórios e quartos compartilhados), além de ser alvo de constantes denúncias com relação às condições de ventilação e higiene, é ineficaz no combate ao novo coronavírus. Novamente, os dados do Censo de São Paulo ajudam a evidenciar o risco: são mais de 11 mil pessoas acolhidas em apenas 99 serviços, em sua maioria, com mais de 100 pessoas por equipamento, sendo que o maior deles acolhe 1.123 pessoas simultâneamente.

A demanda por abrigamento em hotéis surge, então, como a principal alternativa para garantir o isolamento social adequado e seguro à população em situação de rua. Dentre as iniciativas de pressão da sociedade civil, destacamos a campanha “Quartos da Quarentena”, plataforma online que reúne assinaturas da sociedade civil com intuito de pressionar a implementação da política pública de abrigamento em cidades como Belo Horizonte, Recife, Porto Alegre, Florianópolis e São Paulo. As diversas experiências de acolhimento em hotéis também são divulgadas pela campanha.

Foto: Instagram Caio Guatelli (print)

Em São Paulo, especificamente, importante o diálogo aberto pelo movimento “Na Rua Somos Um”, que encaminhou um ofício, assinado por diversas entidades, para a Prefeitura Municipal propondo a utilização da rede hoteleira, em todas suas modalidades, para acolhimento da população em situação de rua, incidindo, também, sob diversos mandatos legislativos. Ações semelhantes foram realizadas pelo Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos da População em Situação de Rua (NDDH-SP), pelo Padre Júlio Lancelotti da Pastoral do Povo da Rua, que tem desenvolvido trabalho de acolhimento da população em situação de rua diariamente e pelo Movimento Nacional da População em Situação de Rua. Ainda em São Paulo, e na interface das políticas de participação social, o Comitê Intersetorial da Política Municipal para a População em Situação de Rua (Comitê PopRua), através dos conselheiros eleitos pela sociedade civil, encaminhou uma Carta Proposta ao Poder Público em 30 de março, com 30 ações para atenuar os efeitos da pandemia na população em situação de rua, dentre as quais consta a  “locação emergencial de hotéis para ampliação do número de vagas de acolhimento”.

A Defensoria Pública da União e a Defensoria Pública do Estado de São Paulo, por sua vez, encaminharam um ofício recomendatório ao Município de São Paulo com medidas urgentes de proteção a população em situação de rua em razão da pandemia do novo coronavírus. Entre as recomendações, destaca-se o pagamento de aluguel social para toda a população em situação de rua enquanto perdurar a pandemia do COVID-19, e a disponibilização de prédios públicos não utilizados, como escolas, estádios de futebol, para abrigo temporário à população em situação de rua.

Em que pese a atuação de diversos órgãos na recomendação e fiscalização das ações do poder executivo, o Judiciário, até o momento, teve participação tímida na temática da população em situação de rua no contexto de pandemia. Sobre a pauta do acolhimento, mais precisamente, apenas uma decisão judicial ganhou repercussão. No dia 23 de abril de 2020, a justiça de Paraíba determinou à Prefeitura de João Pessoa,  a pedido do Ministério Público, o acolhimento provisório das pessoas em situação de rua, durante a pandemia, impondo o oferecimento de  400 (quatrocentas) vagas de acolhimento provisório e voluntário para a toda  a população em situação de rua da cidade, incluindo a possibilidade de acolhimento em hotéis.

O juiz reconheceu a falha histórica do Poder Público na promoção dos direitos fundamentais dessa parcela da população. Logo em seguida, constatou violação do direito à moradia das pessoas em situação de rua, atingindo diretamente o princípio da dignidade da pessoa humana e, no contexto da COVID-19, o seu  direito à saúde. Outro argumento interessante para reconhecer o direito ao acolhimento foi a lesão ao direito à saúde da população em geral, uma vez que a inércia na oferta de acolhida digna para a população em situação de rua a tornaria foco de contágio e, além disso,  a ausência de acolhimento neste momento, certamente provocará, em um futuro distante, inevitável acolhimento pelo Sistema Único de Saúde, nos escassos e caros leitos hospitalares”, nas palavras do juiz (grifo nosso). Ainda que se argumente sobre risco à saúde coletiva, o que potencialmente pode ser utilizado para reforçar estigmas já presentes para esse segmento, a decisão cria parâmetros que asseguram o respeito à autonomia da pessoa em situação de rua, afastando o acolhimento compulsório.

A decisão, no entanto, foi parcialmente revertida duas semanas depois.A obrigação imposta à Prefeitura foi reduzida para oferecer, no mínimo, 117 novas vagas de acolhimento provisório e voluntário. De qualquer forma, a decisão é um primeiro parâmetro para avaliar como o tema do acolhimento pode ser recebido pelo Judiciário.

Com relação ao Poder Legislativo, diversas foram as normativas propostas, tanto em âmbito municipal, quanto federal.  Na esfera federal, o Projeto de Lei 1389/20   aguarda apreciação pelo Senado Federal e autorizará os Estados, o Distrito Federal e os Municípios a utilizarem os saldos remanescentes até 2019 dos respectivos Fundos de Assistência Social em ações emergenciais, exclusivas de assistência social, de combate à pandemia do novo coronavírus.

Especificamente na temática dos hotéis, o Projeto de Lei n.º 989/2020, de autoria do Deputado Federal Alexandre Frota, que aguarda despacho do Presidente da Câmara dos Deputados, determina que os hotéis, pousadas e assemelhados destinem 30% (trinta por cento) de suas vagas a moradores em situação de rua e pessoas que estejam em moradias coletivas, durante o estado de calamidade pública decretado.Também aguarda despacho do Presidente da Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei nº 707/2020, proposto pelos deputados federais Glauber Braga e Talíria Petrone, que dispõe sobre direitos e deveres de pessoas em situação de rua em situações de pandemias e epidemias que exijam isolamento temporário.

Em âmbito local, na cidade de São Paulo, foi sancionada, pelo Prefeito Bruno Covas, a Lei 17.340/2020, de autoria conjunta dos vereadores, que dispõe sobre medidas de proteção da saúde pública e de assistência social contra o COVID-19, prevendo expressamente em seu artigo 13 que o Poder Público poderá disponibilizar vagas de hospedagem em hotéis, pousadas, hospedarias e assemelhados para população em situação de rua.

Em termos de experiências concretas de acolhimento em hotéis, uma das primeiras cidades a implantar a medida foi Niterói – RJ, que no dia 04 de abril começou a receber pessoas em situação de rua em um hotel do centro da cidade, com capacidade para 70 pessoas. No total, foram anunciadas 150 vagas para esse tipo de acolhimento e a pessoa atendida deve assinar um termo de compromisso para cumprir a quarentena.

A Prefeitura de Cuiabá – MT iniciou, no dia 23 de abril de 2020, a ação “Hotel Albergue”, com a disponibilização de 120 vagas para as pessoas em situação de rua. O acolhimento é voluntário e há um trabalho de sensibilização em locais com aglomeração de pessoas em situação de rua para a oferta das vagas.Também o município de Macapá – AP recebeu o valor de R$ 137 mil do governo estadual para o custeio de um hotel para pessoas em situação de rua, com a disponibilização de 70 leitos individuais, todos equipados com kits de higiene e serviços de limpeza do ambiente. O serviço contará com o apoio de 38 técnicos que darão suporte ao serviço 24h, entre assistentes sociais, psicólogos, Guarda Civil Municipal, entre outros.

O município de Osasco – SP acolheu cerca de 30 pessoas, com o oferecimento de três refeições diárias. Por fim, Florianópolis – SC começou o acolhimento bem residualmente, com o encaminhamento de 11 pessoas em situação de rua com sintomas para um hotel da cidade. Agora anuncia um edital para credenciar hotéis para o recebimento da população em situação de rua, garantindo, além da estadia, quatro refeições diárias, água potável e uma equipe para cuidar de pessoas que apresentem sintomas ou confirmação da doença.

A Prefeitura de São Paulo anunciou somente no dia 05 de maio, depois da pressão de Movimentos de Moradia e organizações da Sociedade Civil  um edital de credenciamento para que estabelecimentos hoteleiros interessados possam prestar serviços de hospedagem à população em situação de rua. O projeto inicial prevê a disponibilização de 500 vagas mas atinge somente pessoas idosas e que já se encontram acolhidas em centros de acolhida da cidade. O edital prevê algumas obrigações para a hospedagem: no máximo duas pessoas em cada quarto, três refeições diárias (café da manhã, almoço, jantar), substituição e fornecimento de materiais de higiene pessoal e roupas de cama e banho, limpezas e higienizações semanais, e disponibilização de 1L de água aos hóspedes. Em contrapartida, a Prefeitura subsidiará até R$ 80,00 reais por pessoa, por dia.  A demora em se implantar a iniciativa ganha um contorno especialmente preocupante, uma vez que os hotéis estão sinalizando a recusa ao acolhimento da população em situação de rua, demonstrando somente estar dispostos a hospedar moradores de favelas. Essa recusa restou evidente, no dia 15 de maio, quando o edital teve de ser republicado, diante da ausência de propostas por parte dos hotéis.

O número limitado de vagas (são 25 mil pessoas em situação de rua, 12 mil sem acolhimento) e o recorte específico para um público que está abrigado pode sinalizar que o município está mais preocupado em não desagradar a rede hoteleira do que em garantir a proteção das pessoas que se encontram em situação de calçada, aquelas que são mais expostas ao preconceito e estigma da situação de rua.

Quando a sociedade civil pressiona por vagas em hotéis o faz porque leva em consideração a emergência do quadro de coronavírus que avança a cada semana, apontando o fato de que os hotéis são, no momento, a medida mais eficaz na proteção ao garantir isolamento e, também, mais rápida, já que não se tem que construir toda uma estrutura de acolhimento, ela já existe. Em termos de disponibilidade, São Paulo tem 46 mil leitos de hotéis que se encontram, em sua maioria, vazios. É o suficiente para acolher todas as pessoas em situação de rua da cidade e também outros grupos vulneráveis.

Essa deve ser a resposta para a pergunta formulada: toda a população em situação de rua deve estar protegida da pandemia do coronavírus e é urgente ações que possibilitem o isolamento social deste segmento social de forma segura, caso contrário enfrentaremos uma catástrofe de grande letalidade. É um momento que exige o senso humanitário de todos os gestores públicos. Não podemos permitir neste momento crucial que os preconceitos prevaleçam contra a vida das pessoas em situação de rua, a pandemia tem que bastar.

*Mestranda e Pesquisadora do Laboratório de Justiça Territorial (LabJuta – UFABC), Advogada do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos da População em Situação de Rua (NDDH-SP);
Urbanista e Coordenador do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos;
Advogada, Pós-Graduanda em Direito Penal e Direito Processual Penal na PUC-SP, Integrante da Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama da FDUSP;
Advogada e Integrante da Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama da FDUSP.