Débora Ungaretti, Isadora Guerreiro, Raquel Rolnik, Lara Giacomini*

O processo de remoção da favela do Moinho promovido pelo Governo do Estado de São Paulo neste momento na área central não é um caso isolado. Expõe as estratégias de atuação estatal em processos de reestruturação urbana para promover a expulsão de territórios populares, combinada com os limites da política habitacional vigente em São Paulo: remover a todo o custo mobilizando alternativas habitacionais que não correspondem às necessidades habitacionais da população que está sendo impactada. O resultado é desastroso: em vez de dar resposta à questão da moradia, o próprio poder público cria novos contingentes de pessoas em situação de rua ou que vivem em moradias ainda mais precárias que as anteriores; ou, ainda, repete o padrão histórico de exilar os mais pobres para periferias distantes e sem urbanidade.
Segundo dados da CDHU, cerca de 25% das famílias da favela do Moinho possuem renda de zero a um salário mínimo. As propostas de atendimento habitacional oferecidas pelo Governo do Estado, no entanto, excluem esse grupo das possibilidades de atendimento, ou seja, há ausência de atendimento habitacional para pessoas com renda de zero a um salário mínimo. Na prática, o Governo do Estado promove a precarização habitacional ao fazer com que pessoas que têm na favela uma alternativa habitacional passem à situação de rua, de coabitação ou de aluguel abusivo em moradias precárias, piorando sua situação social e econômica. Moradores relataram que foram orientados a aumentar artificialmente a renda nas declarações sob pena de ficarem sem atendimento habitacional, o que agrava a situação. Ao declararem renda maior do que possuem, os moradores estão sujeitos a serem barrados do financiamento bancário para acesso à unidade habitacional no momento do atendimento definitivo; ou, caso tenham o financiamento aceito, que vivam em uma situação de superendividamento e, portanto, alto risco de inadimplência e despejo. Ou seja, para garantir a adesão dos moradores ao atendimento habitacional ofertado, o Governo do Estado se utiliza de coação e indução à fraude que terão impactos na segurança habitacional dos moradores. A reivindicação dos moradores do Moinho é a garantia de atendimento habitacional adequado para todas as famílias, inclusive para aquelas com renda de zero a um salário mínimo.
Embora não pareça haver nenhum motivo para a desocupação do terreno de forma imediata, a remoção da favela está sendo realizada a toque de caixa, sem que tenham unidades habitacionais suficientes já prontas para atendimento definitivo para as 901 famílias que estão ameaçadas. Em casos assim, é oferecido atendimento habitacional temporário precário, o auxílio aluguel, que consiste na transferência mensal de R$ 800 – a serem pagos parcialmente pelo Governo do Estado, e parcialmente pela Prefeitura. O fato de o valor oferecido ser o dobro do que é oferecido regularmente mostra a desatualização do valor de auxílio aluguel vigente hoje em São Paulo e, ainda assim, continua sendo insuficiente para locação na área central, em especial para famílias e não pessoas sozinhas. Relatos e pesquisa de campo indicam que o aluguel de quartos em pensões com banheiro e lavanderia compartilhados em Campos Elíseos varia entre R$ 750 e R$ 1000. Como consequência, é comum as famílias se instalarem em novas situações de precariedade, já que não há qualquer forma de controle da qualidade das moradias que estão sendo acessadas por meio do auxílio. Além disso, a ausência de previsão de data para atendimento definitivo – que, em outros casos de remoção pela CDHU na área central, chegaram a mais de 10 anos -, e constantes ameaças de corte do auxílio continuado – como aconteceu com famílias removidas pela CDHU em Campos Elíseos – cria um cenário de insegurança constante. A reivindicação do Moinho é por atendimento chave a chave – ou seja, a pessoa só deixa a moradia atual dela quando tiver a chave para fazer a mudança para a nova moradia, adequada e definitiva.
Atendimento habitacional proposto se baseia no endividamento das famílias
Como atendimento habitacional definitivo, está sendo oferecido o acesso a unidades habitacionais por meio de carta de crédito – que consiste na oferta de crédito subsidiado para compra de imóvel no mercado privado, ou financiamento de unidade habitacional construída pelo poder público ou em regime de parceria público-privada. Ou seja, o atendimento habitacional definitivo se baseia no endividamento das famílias. Em ambos os casos, ainda que o valor das parcelas sejam parcialmente subsidiados, e definidos a partir da capacidade de endividamento das famílias, o custo da moradia considerando as atualizações dos valores, os valores de condomínio e contas de água e luz podem gerar ônus excessivo e instabilidade para pessoas que não tem fluxos de rendas mensais constantes. Essa situação pode ser agravada no caso das pessoas que estão sendo orientadas a aumentarem a renda real no cadastramento, o que pode impactar no cálculo dos valores das parcelas e subsídios concedidos. A reivindicação dos moradores do Moinho é pelo subsídio total, como forma de garantir a compatibilidade do custo das novas moradias com a renda de quem é removido.
Em uma segunda reunião da CDHU com a SPU, realizada em 14 de janeiro de 2025, os representantes da CDHU deixaram evidente o posicionamento da companhia em negar o atendimento habitacional a famílias com renda de zero a um salário mínimo. Em uma das falas da reunião, apresentadas na audiência pública do dia 28 de abril de 2025, um funcionário argumenta: “Não acho intelectualmente honesto defender a gratuidade em face da inexistência de qualquer dispositivo legal que fale da gratuidade”. Em seguida, sua colega endossa sua fala, dizendo que “todo mundo aqui quer dar dignidade para essas famílias, e nós não queremos dar de graça porque de graça não tem graça”.
Moradias oferecidas não se adequam às necessidades da vida concreta
Além disso, as unidades habitacionais oferecidas não necessariamente correspondem às necessidades das famílias removidas: a maior parte delas não estão na área central, ou têm tamanhos inadequados para famílias maiores. Podemos constatar, ainda, um “overbooking” dos empreendimentos habitacionais oferecidos: os mesmos empreendimentos são mobilizados para atender diferentes demandas em São Paulo, parte inclusive que já foi removida há mais tempo e já está em auxílio aluguel. É o caso de empreendimentos da PPP Habitacional municipal, que seriam destinados para atender famílias removidas pela própria PPP e que agora também estão sendo oferecidos para atendimento de moradores do Moinho. E os métodos utilizados para “convencer” as famílias a aderirem ao que é ofertado é basicamente comunicar às famílias que ou estas aceitam o que é ofertado ou poderão ficar “sem nada”, o que na prática é um o cenário de coerção. A coerção é ainda maior quando as casas dos que aderiram são demolidas, gerando um cenário de instabilidade e pressão para que os moradores que ainda lutam por formas de atendimento que os contemple saiam rapidamente. A reivindicação dos moradores do Moinho é pela garantia de atendimento na área central, em unidades habitacionais que correspondam às diferentes composições pessoais e familiares presentes na favela.
Transmissão da Audiência Pública sobre a Favela do Monho na ALESP (28/04/2025)
https://www.youtube.com/live/6LTgdazTqKM
Todas essas situações podem ser vistas através de relatos de moradoras do Moinho na Audiência Pública realizada na ALESP para tratar do tema. Cinthia vive há 18 anos no Moinho e é dona de uma padaria na comunidade: “(…) a CDHU entrou mentindo (…) dizendo que ia ter moradia ali próximo da área, Santa Cecília, Barra Funda e Campos Elíseos, e não existe (…). Eles fizeram parceria com algumas PPPs, onde oferecem apartamentos de 25 m2 com condomínio de 400 reais, forçando a população a informar uma renda de 1 salário mínimo, mesmo sem ter”. A moradora relata que sua renda depende integralmente de seu estabelecimento na favela, onde trabalha junto a seus dois filhos e suas duas noras – a remoção da comunidade significaria, portanto, a extinção da renda de sua família. Ainda assim, Cinthia foi coagida pela CDHU a declarar um rendimento mensal de 1 salário mínimo, incompatível com a sua realidade financeira pós-remoção. O caso dessa morada, infelizmente, não se trata de uma conduta isolada de funcionários da companhia: a coação de moradores com intuito de aumentar artificiais suas rendas, a fim de torná-los aptos ao modelo de financiamento ofertado, tem sido empregada de forma sistemática no atendimento da CDHU às famílias.
Ainda, ao entregarem suas casas, as famílias perdem não só seu lugar de moradia, mas, muitas vezes, sua fonte de renda – os pontos comerciais consolidados nas frentes dos lotes e garagens na favela. O atendimento habitacional proposto é descolado do trabalho e renda: a organização de empreendimentos habitacionais inviabiliza a reabertura de pontos de comércio. É muito comum, por conta disso, pontos de comércio serem abertos nas calçadas e áreas comuns dos empreendimentos, gerando conflitos e constante repressão por parte do poder público.
Reivindicações históricas e condições de vida devem ser premissa para atendimento
Mas, mais do que isso, uma reivindicação histórica da favela do Moinho é pela regularização fundiária. A favela está demarcada como zona especial de interesse social no Plano Diretor de São Paulo, o que significa que qualquer intervenção na área deve ter participação social – com formação de um Conselho de ZEIS – e ser prioritariamente voltada à garantia da permanência da população moradora, com melhorias urbanas e habitacionais. No entanto, a prefeitura de São Paulo está desmontando o regramento de ZEIS por meio de alterações na legislação urbanística para que não seja aplicável em casos de imóveis públicos. Uma alteração na lei de parcelamento, uso e ocupação do solo criou essa exceção que, na prática, esvazia de conteúdo e de sentido a própria demarcação desse zoneamento nessas áreas, e contraria não só o plano diretor como o princípio constitucional de gestão democrática das cidades. Se a área é inadequada para se transformar em bairro definitivo, a solução deve ser construída em conjunto com os moradores e com formas de atendimento habitacional que tenham relação com suas condições concretas de vida.
A forma como está sendo feita a remoção do Moinho não contempla nada disso.
Não se trata apenas de uma falta de participação, mas de um processo baseado em violência, fraude, descumprimento de acordos e de deliberações do processo de negociação, e até dos requisitos do governo federal para cessão da área. O que nos revela que se trata muito mais de estratégia de eliminação da favela do que de melhoria real das condições de moradia dos que ali vivem. E neste ponto, o Moinho não é exceção! É assim que os moradores de pensões e ocupações dos Campos Elísios têm sido tratados, é assim que várias favelas e comunidades ameaçadas de remoção são abordadas também. A cena da tropa de choque e as bombas para que a estratégia do governo do Estado e prefeitura de esvaziar a favela seja implementada a qualquer custo, mobilizando inclusive o argumento do combate ao tráfico de drogas, é bem significativa do que acabamos de argumentar. Mesmo que ali tenham se instalado traficantes, como argumenta o Governo do Estado, seriam os quase 3000 moradores do Moinho traficantes? Se o objetivo é melhorar as condições de vida de quem vive nesta – e em outras – favelas, qual é a política habitacional que de fato será capaz de fazer isto? Certamente não a que está sendo oferecida, e certamente, jamais desta forma.
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