Por Ricardo Moretti¹, Benedito Barbosa², Francisco Comaru³
Entre os dias 19 e 26 de marco de 2016, um grupo de dois professores da Universidade Federal do ABC, um advogado popular do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos e representante de Movimento Popular de São Paulo, dois pesquisadores da Universidade de Londres (UCL DPU) e uma pesquisadora da Universidade de Sheffield estiveram na cidade de Johannesburgo, África do Sul, com objetivo de conhecer, trocar experiências, estabelecer linhas comuns de ação e pesquisa, bem como abrir caminhos para construção de novas estratégias no enfrentamento de problemas referentes às formas de acesso a moradia nas áreas centrais de Johannesburgo e São Paulo.
Guardam muitas semelhanças as dinâmicas territoriais das duas cidades. Johannesburgo e São Paulo, mesmo que por caminhos e histórias diferentes, se tornaram centros econômicos importantes na África e América Latina e são marcadas por um profundo processo de segregação espacial e enorme quantidade de conflitos pelo direito a moradia.
Não muito distante do novo centro de negócios de Johanesburgo está Alexandra, um assentamento informal onde vivem mais de 340 mil pessoas, que faz lembrar Heliópolis ou Paraisópolis, próximos às áreas centrais de São Paulo. Ao se analisar o processo de esvaziamento do centro de São Paulo e de Johanesburgo, cada qual com suas especificidades, identificam-se dilemas e perguntas semelhantes:
• Como enfrentar o enorme processo de favelização associado à concentração da terra e falta de disponibilidade para as camadas mais carentes?
• Como garantir moradia com qualidade vida? Como resolver a curto prazo o problema das áreas ocupadas no centro ou nas favelas, onde ainda não existe acesso à água e energia?
• Como garantir o processo de organização das comunidades e educação popular para que possam construir suas alternativas?
• Como garantir moradia nas áreas centrais frente a enorme quantidade de imóveis vazios e abandonados no centro a serviço da especulação imobiliária?
• Como garantir o controle social das políticas habitacionais e a inclusão de instrumentos da função social da propriedade?
Vista do Assentamento de Alexandra, 340 mil moradores – Foto Francisco Comaru
Ao longo da estadia em Johannesburgo estas, entre outras perguntas, permearam os debates e devem ser questões que definirão a continuidade desta agenda de intercâmbio. Não há respostas prontas, mas acredita-se que a troca de experiências possa permitir avanços frente aos desafios que as rodeiam.
De teto e chão não se abre mão!
Nesta rápida passagem por Johannesburgo foi possível perceber a grande quantidade de áreas ocupadas e a demanda por conexões entre as suas áreas segregadas e as novas centralidades, em um contexto de contradições enfrentadas nas cidades capitalistas, entre eles o do alto preço da terra e da moradia. A terra é cara, morar com dignidade é caro, e o Estado parece não dar conta de enfrentar o problema. As iniciativas parecem insuficientes diante da demanda por moradia na região central da cidade e o poder público delega parte de suas responsabilidades às iniciativas do setor privado, seja aquele que recupera edificações e espaços públicos na perspectiva de lucratividade, seja aquele que visa atender demandas de habitação social, em iniciativas de empreendedorismo social.
No centro de Johannesburgo é possível perceber a grande quantidade de atores privados atuando. Em muitos prédios ocupados, pessoas são exploradas por grupos ou supostos intermediários que cobram aluguel, algo que faz lembrar os cortiços em São Paulo. Chama atenção a precariedade das condições em parte destes prédios, inclusive com falta de água, energia elétrica e saneamento básico.
Para além da dificuldade de moradia, da resistência aos despejos e ações dos intermediários, há sinais de esperança em diversos processos de educação popular em curso. Identifica-se a possibilidade de interlocução entre as dinâmicas de São Paulo e Johannesburgo, em alguns pontos tais como:
1. Moradia Provisória: em São Paulo há cerca de 100 mil pessoas que recebem auxilio aluguel insuficiente e aguardam uma solução definitiva para suas moradias. Porem, há algum tempo foram extintos os alojamentos, solução que ainda se utiliza em Johannesburg, como em Alexandra ‘Reyshoma’, onde 132 famílias vivem em casas de lata, com cerca de 12 metros quadrados, sem água ou banheiro;
Assentamento Provisório de Reyashoma em Alexandra – Fotos Francisco Comaru
2. Locação Social: na cidade Johanesburgo há uma escala considerável na produção ou reforma de imóveis para locação social. O arranjo institucional construído por Johannesburgo pode colocar luz no processo de São Paulo, seja no que se refere a escala, seja na diversidade dos caminhos encontrados para garantir acesso a moradia para as famílias com renda mais baixa. Se na cidade de Johanesburgo este processo alcançou uma perceptível escala na cidade de São Paulo tais iniciativas ainda são relativamente limitadas;
Empreendimento de Locação Social no Centro de Joanesburgo – Fotos Francisco Comaru
3. Processos de Renovação Urbana e ameaças de Remoções e Despejos forçados: Johannesburgo parecer viver um grande dilema entre os processos de renovação urbana e o processo de inclusão territorial de suas populações. O caso da intervenção feita em Newton parece expressar esta realidade. As obras feitas junto à Ponte Nelson Mandela, que desejava unir territorialmente os bairros segregados ao centro rico, incluem moradia social, porem há dificuldades em atender famílias de baixa renda nas unidades produzidas. As intervenções de caráter cultural carecem de vitalidade no período noturno e convive-se com a ameaça de expulsão de famílias que vivem em edificações ociosas da rede ferroviária e em barracos construídos em sua cercania, em um assentamento que se assemelha com o caso de Favela do Moinho na cidade de São Paulo(I). Outra questão presente é que as intervenções de renovação urbana dos territórios aumentam o preço da terra e a especulação imobiliária.
4. Requalificação dos Prédios Ocupados pelos Moradores: Com o fim do Regi-me de Apartheid no ano de 1994 e seguintes, ocorreu um intenso esvaziamento do centro de Johannesburgo, e um concomitante processo de ocupação destes imóveis. A maioria destas ocupações parecem ter sido espontâneas, enquanto praticamente no mesmo período, milhares de famílias sem teto, de forma organizada, ocupavam os imóveis vazios no centro de São Paulo. As áreas centrais das duas metrópoles guardam semelhanças neste processo de deterioração dos imóveis ocupados. Com o seguir dos anos vários destes imóveis foram reformados pelos próprios moradores, com ligação de água, energia elétrica, melhoria das condições de segurança, etc. Este fenômeno ocorre tanto em São Paulo como em Johannesburgo.
Área Ocupada Pelos Catadores ameaçados de Remoção próximos ao Bairro de Newtown – Fotos Francisco Comaru
5. Uso dos Instrumentos da Função Social da Propriedade: Na cidade de São Paulo os Movimentos de Moradia e pela Reforma Urbana, ao longo dos anos, construíram uma serie estratégias de defesa do direito a moradia e da função social da propriedade, que vão das Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) as Cotas de Solidariedade. A constituição da África do Sul também obriga o estado a garantir a moradia para famílias em casos de despejo. No que diz respeito à legislação, em especial aos instrumentos de garantia do direito à moradia, podem haver elementos de troca entre os atores sociais de São Paulo e de Johanesburgo, que podem ajudar a fortalecer a luta e os processos de resistência à remoção força-da, bem como fortalecer a pauta associada à luta pela segurança na posse. Neste sentido, além das ZEIS pode-se citar também o instrumento da Usucapião Especial Urbano com resultados importantes no centro de São Paulo(II).
6. Pedagogia do Confronto e Educação Popular: Podemos identificar elementos da educação popular e pedagogia do confronto(III) nos diversos encontros e debates, nas ocupações ou iniciativas de caráter popular, na conversa de roda, nos processos de resistência e nos fóruns de debate sobre a questão fundiária dos prédios ocupados que contaram com especial participação da juventude. São movimentos que nascem de baixo para cima e a partir dos pobres, do processo de organização e resistência. Tais elementos parecem estar presentes nas ocupações em Johanesburgo e nas ocupações de prédios vazios em São Paulo.
7. Controle Social das Políticas Públicas de Habitação: Durante muitos anos na cidade de São Paulo os Movimentos Populares de Moradia buscaram constituir fóruns populares, como o Fórum Centro Vivo, ou mais recentemente o Movimento contra a Implantação do Projeto Nova Luz e o Comitê Popular da Copa, para denunciar as violações do direito à mora-dia no centro de São Paulo, as ameaças aos despejos e as remoções forçadas, para denunciar as ameaças contra a população de rua e contra os trabalhadores informais. O movimento popular de moradia lutou também por instancias de caráter institucional como Conselho Municipal de Habitação com o objetivo de incidir junto ao poder publico sobre as políticas de habitação em toda cidade. Neste sentido, consideramos que há muitos pontos de diálogo a serem aprofundados entre os atores sociais de Johanesburgo e São Paulo.
Privatização dos territórios: a solução neoliberal na contramão da agenda popular
Por muitos anos os governos de forma geral deram pouca atenção ou desprezaram propostas e as alternativas populares como caminho da inclusão social nos territórios. Em inúmeros casos, as experiências populares são relegadas a “iniciativas pilotos” e raramente encaradas como solução ou alternativa de escala para os problemas de moradia social.
Ocupação no centro de Johannesburgo – Foto Francisco Comaru
Em São Paulo, a proposta dos mutirões autogestionários, raras vezes e somente por pressão dos Movimentos de Moradia foi incluída na pautas governamentais como solução ou alternativa habitacional. As soluções de moradia para a área central raras vezes foram encaradas como prioridade do poder publico. Em geral, os governos, com baixa capacidade de investimento têm lançado mão das Parcerias Publico Privadas – PPPs.
Outro mecanismo bastante utilizado ultimamente no território urbano são as Operações Urbanas. Por meio delas, flexibiliza-se as leis urbanísticas para atrair atores imobiliários particulares, e parcelas das cidades ficam destinadas à ação intensa de investidores privados, com duvidosos retornos sociais(IV).
O que ocorreu com parte do centro de Johannesburgo, se assemelha, guarda-da as devidas proporções e as características dos seus territórios, com que ocorreu, ou ainda ocorre em inúmeras cidades importantes do mundo, com muitos ganhos concentrados para o setor privado e uma aparente melhoria para o território e a cidade, porém, com enorme impacto para as populações de baixa renda, que quase nada recebem de contrapartida social do referido investimento, explicitando processos de injustiça social.
Vista da Região central de Johannesburgo – Foto Francisco Comaru
As iniciativas de parcerias entre o setor privado e a Prefeitura de Johannes-burgo para a requalificação da Praça Mahatma Gandhi e seu entorno, que aparentemente trouxeram melhorias estéticas para a região estão associadas a uma concepção que atende aos interesses imobiliários que operam com altíssimas taxas de lucratividade, contribuindo para o fortalecimento da dimensão concentradora e desigual da sociedade. Essas iniciativas lideradas pelos agentes privados revelam que pouco ou nada têm, na sua essência, de diferente de outras estratégias neoliberais de operação e transformação do espaço urbano, que ocorrem em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Londres, entre outras.
Associado a este modelo e aos interesses capitalistas de remodelação do es-paço urbano também estão os megaeventos. Os grandes eventos como Copa do Mundo e as Olimpíadas produzem um verdadeiro caos para as famílias mais pobres, seja pelo imediato aumento do custo da moradia, seja por seu caráter antidemocrático e violento sobre os seguimentos mais vulneráveis da população da cidade.
Praça Mahatma Gandhi no Centro de Joanesburgo: privatizada a serviço da Especulação Imobiliária – Foto Francisco Comaru
Nota-se que a lógica dos megaeventos consiste na maximização dos lucros de empresas patrocinadoras e parceiras sobre os territórios, aprofundando e levando às ultimas conseqüências o paradigma da “cidade mercadoria”. Neste modelo não há lugar para os pobres (sem teto, população em situação de rua, pequenos vendedores e comerciantes ambulantes) e impera a lógica da exclusão.
Rua privatizada no Centro Johannesburgo – Foto Francisco Comaru
Em Johanesburgo a Ocupação Josana próxima ao estádio da Copa do Mundo Ellis Park, apesar das ameaças de remoção por parte da prefeitura conseguiu resistir, da mesma forma como ocorreu com a Favela da Paz em São Paulo próxima ao estádio da Copa Itaquerão(V). A mesma sorte não teve a Comunidade da Vila Autódromo no Rio de Janeiro que foi removida porque estava próxima das áreas de interesse da Vila Olímpica daquela cidade.
Edifício Vazio e Lacrado no Centro de Joanesburgo – Foto Francisco Comaru
Luta e resistência: caminhos abertos para novas trocas e experiências
Do intenso processo de luta contra o regime de Apartheid, às ocupações de espaços vazios e prédios no centro, nota-se que os pobres e excluídos de Johannesburgo que lutaram e lutam pela terra, marcaram com sangue a sua história. Salta aos olhos que os excluídos estão construindo seu caminho e sua história. Existem diversas iniciativas e experiências que podem ser compartilhadas com outros movimentos e é possível perceber que os atores sociais e populares compromissados com projetos de transformação, de ambos os países, desejam esta troca, especialmente no que diz respeito às formas de resistência e garantia do direito à moradia, à melhoria dos prédios ocupados e ainda, no que tange os modelos de produção e gestão social da moradia.
_________________________
1. Engenheiro civil, professor da Universidade Federal do ABC
2. Advogado do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, Membro da Central dos Movimentos Populares (CMP) e Mestre pela Universidade Federal do ABC
3. Engenheiro civil, professor da Universidade Federal do ABC
I. Ver: Delana Cristina Corazza. Os limites da cidade: direito à moradia e atuação do estado em casos de remoção no município de São Paulo. 2014. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Uni-versidade de São Paulo.
II. Ver: Fabiana Rodrigues. Desafios e perspectivas da aplicação da usucapião especial coletiva: estudo de caso na Ocupação da Rua Sólon no centro da cidade de São Paulo. 2015. Dissertação (Mestrado em Pla-nejamento e Gestão do Território) – Universidade Federal do ABC.
III. Ver: Benedito Roberto Barbosa. Protagonismo dos movimentos de moradia no centro de São Paulo: trajetória, lutas e influências nas políticas públicas. 2014. Dissertação (Mestrado em Planejamento e Gestão do Território) – Universidade Federal do ABC, Fundação Universidade Federal do ABC.
Ver: CARLI, B. ; FREDIANI, A. ; BARBOSA, B. ; COMARU, FA ; Moretti, R.S. . Regeneration through the ?pedagogy of confrontation?: exploring critical spatial practices of social movements in São Paulo Inner City as avenues for urban renewal. de-arq – Revista de Arquitetura de la Universidad de los Andes / Journal of Architecture, Universidad de los andes, v. 16, p. 146-161, 2015.
IV. Ver: FIX, M.. Parceiros da exclusão. Duas histórias da construção de uma “nova cidade” em São Paulo: Faria Lima e Água Espraiada. São Paulo: Boitempo, 2001. v. 1. 256p.
V. Ver: Talita Anzei Gosales. OS CONFLITOS DA (FAVELA DA) PAZ: UMA EXPERIÊNCIA DE PLANEJAMENTO CONFLITUAL NO CONTEXTO DOS MEGAEVENTOS EM SÃO PAULO. 2015. Dissertação (Mestrado em Pla-nejamento e Gestão do Território) – Universidade Federal do ABC.
Comments are closed for this post.