Por Fabrício Muriana*
Desde 1988, acontece no Brasil um processo de criação de instituições participativas (IPs), que devem atender aos desígnios da nova constituição e cumprir diversos papéis na administração pública: desde gerar aprendizado trazido pelo debate público e pelos interesses em jogo, passando pela abertura a novas agendas de debates, controle social e eventualmente até como lugares de deliberação sobre a destinação de verbas e prioridades de investimento. Conselhos e Orçamentos Participativos são tipos de IPs que podem cumprir esses papéis.
A Prefeitura de São Paulo conta com pelo menos 72 conselhos temáticos e regionais, o que impõe o desafio de encontrar formas de gerir o município considerando as decisões ou ao menos escutando as agendas advindas de tantas IPs. Um dos processos para a definição de prioridades é o Ciclo Participativo de Planejamento e Orçamento, que é organizado pelo Conselho de Planejamento e Orçamento Participativos (CPOP).
Numa cidade com as dimensões de São Paulo, há uma dificuldade adicional de regionalizar o debate de IPs que discutam ou deliberem sobre questões que afetam ao município todo. Nesse contexto, vamos encontrando cada vez mais tentativas de tradução de processos participativos por meio de sites onde a população pode interferir nos temas sem necessariamente estar presente nas audiências públicas, como foi o caso da revisão do Plano Diretor e como vem acontecendo nesse exato momento com o CPOP.
Audiências públicas tradicionais e participação pela internet são mecanismos complementares na formação de agendas e definição de prioridades. Não podem ser vistos como antagônicos nem independentes, pois ajudam a dar complexidade ao debate público como um todo. No entanto, sempre que há uma tradução do processo participativo na internet, algo do debate se perde na própria forma como se dá a interação: individualmente, mediada por máquinas e redes, muitas vezes com pouca divulgação, e o aspecto mais importante, reduzindo drasticamente a complexidade do debate público somente àquilo que se quer deliberar ou somente à abertura para sugestões.
Esta breve contextualização nos serve de guia para analisar um processo participativo como este em curso até o dia 30 de agosto, na plataforma Planeja Sampa, que tem como objetivo definir prioridades orçamentárias para o próximo ano.
O que chama mais atenção nesse processo participativo é o quão simplificadoras são as alternativas apresentadas. Oito prioridades são listadas no “cardápio para votação” e supomos que a mais votada será prioridade no Orçamento de 2016, mas não é possível saber:
– Como foram definidas essas prioridades e quais os seus critérios de definição? O cidadão mais crítico perguntaria por que não constam temas como transporte público, assistência social, incremento à cultura, entre muitos outros que não foram contemplados nas oito prioridades.
– Ao votar em uma, supomos que esta será prioridade em detrimento da outra? Portanto, OU fazemos calçadas, OU regulação fundiária, o que soa como absurdo da perspectiva do funcionamento de uma cidade. Qual é então a utilização que se fará dessa votação?
– Não há qualquer solicitação de dados nem georreferenciamento dos votos. Mesmo que uma pessoa viva na China, ela pode votar nas prioridades de São Paulo. E digamos que haja uma concentração dos votos nos bairros residenciais da cidade, a prioridade escolhida servirá também aos bairros comerciais, como se tivessem o mesmo tipo de demanda? O georreferenciamento já foi utilizado na revisão participativa do Plano Diretor, portanto, qual é a razão de não utilizá-lo agora?
– Há uma redução do processo participativo somente ao voto, o que dá a sensação de que se delibera sobre algo concreto, mas não há praticamente nenhuma contextualização sobre o debate público nas audiências. Por que, então, não há algum tipo de fórum, mecanismo de fácil implementação na internet, onde se possa discutir as propostas?
Duas dimensões que já foram contempladas em outros processos participativos parecem não ter tido o devido cuidado nesse processo da CPOP. Contexto é a primeira dimensão, sem a qual não é possível fazer escolhas. “Calçadas” ou “pavimentação”? Sem contexto, só podemos responder “depende”. Consequência é a segunda dimensão: minha escolha é “pavimentação”, então quantos reais a mais serão investidos caso essa seja a prioridade do próximo ano?
A literatura acadêmica mostra que há poucas IPs consolidadas, cujo funcionamento acontece de maneira regular e com resultados mensuráveis. Há, portanto, um contexto de transição das administrações públicas aos novos termos da democracia participativa brasileira. Esse lugar de transição permite experimentos que podem aprofundar o processo democrático. A outra face da moeda é o tipo de participação que seja anódino ou em que não fique claro para o cidadão qual é a sua agência no processo.
*Fabrício é mestrando do Programa de Mudança Social e Participação Política da EACH-USP, integra o Núcleo de Democracia e Ação Coletiva do Cebrap e foi colaborador do projeto Arquitetura da Gentrificação.
A democracia como política de participação popular precisa ser reinventada. Ela não está funcionando para a escala de agrupamentos humanos que a realidade contemporânea apresenta. Talvez daí venha toda essa crise de representatividade em escala quase global. Novos modos precisam ser pensados, e testados. Não podemos todos nos juntar no Anhangabaú e levantar a mão para escolher x ou y. Aliás, hoje as opções são muito mais complexas do que isso, temos um alfabeto caminhos a seguir (daí a ótima crítica do artigo). Temos que soltar as amarras da ágora grega e pensar de modo mais fracionado, pois somos fracionados; nenhuma aglomeração de 20 milhões de pessoas é homogênea. Os meios de participação tem que ser mais dinâmicos, abertos a correções de erros diagnosticados de forma mais fluída. Hoje temos um sistema democrático engessado e carcomido, que representa tacanhamente a vontade daqueles a quem deveria servir, e sendo incapaz de ouvir a todos, ouve alguns, esses influentes, que desviam o tabuleiro para seu lado.